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Há 40 anos, primeira eleição para prefeito do Recife pós-ditadura expôs rupturas, acusações violentas e polarização

Eleição de 1985 no Recife foi marcada por racha no MDB, que levou Jarbas Vasconcelos a vencer o pleito filiado ao PSB de Miguel Arraes

Por Rodrigo Fernandes, Cristiane Ribeiro Publicado em 14/11/2025 às 16:39

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A eleição municipal de 1985 no Recife, cujo 40º aniversário ocorre neste sábado, dia 15, continua sendo um marco da redemocratização, não apenas pela sua singularidade política, mas pelo conjunto de tensões, rupturas e confrontos que redefiniram o cenário da capital naquele período.

Diferente em forma e conteúdo, o pleito combinou tensão partidária, diferentes costuras de palanques, ingerência de lideranças nacionais, acusações violentas e uma estratégia de comunicação que subverteu previsões.

Naquela campanha, que durou de agosto a novembro, política e transição democrática se misturaram em um cenário que resultou na vitória de Jarbas Vasconcelos como primeiro prefeito eleito da cidade do Recife.

Contexto histórico

Entre 1969 e 1985, o comando do Executivo municipal foi entregue a prefeitos “biônicos”, nomeados pelo governador mediante indicação do presidente da República, como parte da estratégia de controle político sobre os principais centros urbanos.

As eleições municipais de 1985, portanto, foram o primeiro grande teste da Nova República, pós-ditadura. Depois de duas décadas de prefeitos nomeados, as capitais voltaram a escolher seus representantes pelo voto popular, num processo que começou ainda sob a presidência de Tancredo Neves, eleito indiretamente em janeiro daquele ano.

Arquivo Público de Pernambuco
Jornal do Commercio noticiou a eleição para prefeito do Recife em 1985 - Arquivo Público de Pernambuco

Coube a José Sarney, que assumiu a presidência após a morte de Tancredo, ocorrida em abril, convocar o pleito eleitoral de 15 de novembro, numa tentativa de ampliar a legitimidade do novo governo.

O pleito ocorreu em 201 municípios de segurança nacional, como eram chamadas cidades portuárias, áreas estratégicas e regiões de fronteira, mobilizando cerca de 18 milhões de eleitores.

Assim como outras capitais, o Recife voltou às urnas após 22 anos sem escolher seu prefeito — a última eleição municipal havia ocorrido em 1963, quando Pelópidas Silveira foi eleito.

O cenário pernambucano

A eleição do Recife, única cidade pernambucana a receber o pleito, aconteceu em um contexto também de reorganização política. Miguel Arraes havia voltado do exílio pós-ditadura e tentava retomar seu papel de liderança estadual. O então deputado Jarbas Vasconcelos, por sua vez, tentava projetar seu nome na capital.

O primeiro desentendimento ocorreu antes da composição das chapas, quando Jarbas declarou apoio à candidatura do correligionário Marcos Freire, e não à chapa de Arraes, na eleição para o governo do Estado que ocorreria somente no ano seguinte.

Ao mesmo tempo, houve uma divisão dentro do PMDB recifense. Uma ala comandada por Cid Sampaio e Sérgio Guerra, articulada com o PFL de Marco Maciel e Roberto Magalhães, partidos que juntos formavam a Aliança Democrática, viabilizou a escolha de Sérgio Murilo, e não Jarbas, como representante do partido na eleição para prefeito.

A Aliança Democrática, à qual Murilo era vinculado, naquele momento carregava o peso simbólico da vitória de Tancredo Neves à presidência. A recusa ao nome de Jarbas envolvia justamente a ausência dele na votação que elegeu Tancredo no Colégio Eleitoral, como conta o cientista político Antônio Lavareda no prefácio da biografia de Jarbas Vasconcelos lançada em 2023.

“Por coerência 'excessiva' - como ele próprio reconheceria anos depois -, vez que fora um dos comandantes da campanha das “Diretas”, não admitiu comparecer ao Colégio Eleitoral. Não votara em Tancredo Neves. Esse comportamento, sobretudo após a morte trágica do presidente eleito, parecia quase um crime de lesa-pátria”, recorda Lavareda.

A ida de Jarbas para o PSB

Fora do PMDB, Jarbas se viu obrigado a buscar abrigo no PSB de Miguel Arraes, sigla que, naquele momento, mal existia no Recife. “Foi tudo combinado com Miguel Arraes. O PSB no Recife foi criado apenas para a candidatura dele”, contou Lavareda, que atuou como secretário-geral da comissão executiva da campanha.

“Houve aí uma primeira disputa jurídica que foi a disputa dentro do PMDB. Em virtude da quantidade de eleitores que eles filiaram de última hora, Jarbas perdeu a indicação e teve que sair candidato pelo PSB”, recorda João Humberto Martorelli, coordenador jurídico da campanha jarbista.

A jornalista e ex-deputada estadual Terezinha Nunes, que vivenciou a campanha daquele ano, afirma que a manobra também foi positiva para Miguel Arraes, de olho na eleição para governador do ano seguinte, uma vez que o grupo de Marcos Freire, seu possível adversário no pleito, declarou apoio a Sérgio Murilo.

“Arraes inicialmente tentou apoiar Sérgio Murilo como uma forma de ser contra Jarbas. Com o tempo, porém, percebeu que ele não tinha tanta força na capital, e acabou se aproximando de Jarbas, mesmo sem querer. Era a forma de viabilizar sua própria candidatura [ao governo do estado]”, contou a jornalista ao JC.

Sérgio Murilo Júnior, filho do candidato emedebista, falecido em 2010, corroborou a história. “Arraes, que não gostava de Jarbas, tinha um problema em apoiar a candidatura do meu pai, que era a questão de Marcos Freire. Porque a vitória do meu pai para a prefeitura fortaleceria o nome de Marcos Freire para disputar o governo do estado. A impressão é que isso foi uma das coisas que determinou o apoio de a Arraes a Jarbas, e não a meu pai”.

Acervo JC Imagem
Jarbas Vasconcelos e Miguel Arraes juntos na campanha de 1985 - Acervo JC Imagem

Paulo Rubem Santiago (PT), que disputou a eleição para vice-prefeito na chapa de Bruno Martiniano (PT), revelou que o Partido dos Trabalhadores chegou a oferecer espaço para Jarbas.

“A gente chegou a convidá-lo, mas ele optou por uma candidatura pelo PSB. Houve, inclusive, uma reunião no Derby e chegamos a admitir a possibilidade de ceder a sigla para ele disputar pelo PT. Eu participei dessa reunião, Fernando Ferro participou, mas Jarbas, de forma muito tranquila, optou depois por uma filiação ao PSB. E ganhou”, relatou.

Para Sérgio Murilo Júnior, o pai era favorito na disputa pela prefeitura. Ele lembra que o pai emergiu “como muito forte para disputar a eleição”, uma vez que tinha apoio institucional avassalador do governo do Estado, da prefeitura e do governo federal, que se alinharam à sua candidatura.

A força simbólica da Aliança Democrática, somada à imagem ainda intensa de Tancredo Neves, reforçava o cenário adverso para Jarbas, que também carregava o estigma de não ter votado no presidente eleito pelo Colégio Eleitoral.

O diagnóstico de Antônio Lavareda era de que, “do ponto de vista político, organizacional e partidário, Jarbas era destinado à derrota”.

Acusações, contra-ataques e a escalada do conflito

O início da propaganda eleitoral expôs o desequilíbrio de forças: Sérgio Murilo tinha 16 minutos de guia graças à união PMDB–PFL, enquanto Jarbas mal passava de um minuto. Mesmo assim, a campanha jarbista encontrou brechas para reagir, e o embate rapidamente descambou para ataques pessoais.

Na reta final, ressurgiu a história de que Sérgio Murilo teria cometido o assassinato de um homem em Carpina, em 1959, em legítima defesa, num episódio ocorrido dentro de um restaurante. Milhares de panfletos distribuídos especialmente nos morros do Recife espalharam o rótulo de “assassino de Carpina”, pressionando a candidatura peemedebista.

Para responder, Murilo levou a viúva da vítima a um comício, na tentativa de conter danos. Ainda assim, pesquisas começaram a registrar perda de apoio.

“O nível da campanha baixou muito a partir dessas informações. Era o que hoje em dia se chamaria de fake news”, afirmou Sérgio Murilo Júnior, destacando que o eleitorado do Recife não tinha conhecimento do ocorrido em Carpina.

Martorelli rejeita a versão de que a equipe de Jarbas teria difundido o boato. “Não partiu da campanha de Jarbas. Eu tenho certeza absoluta”, disse o coordenador jurídico da campanha.

A disputa, porém, não cessou. Em resposta, a campanha de Murilo passou a divulgar uma carta atribuída ao pai de Jarbas, enviada ao ex-governador Moura Cavalcanti, na qual relatava ter sido espancado pelo filho.

“Houve isso, uma carta que o pai de Jarbas teria escrito dizendo que Jarbas deu no pai. Houve muita contrapropaganda. O que hoje se faz nas redes sociais se fazia pichando muro”, lembrou o ex-deputado Raul Henry, assessor pessoal de Jarbas durante aquela campanha.

A peça foi usada contra a vontade do próprio Sérgio Murilo, segundo o filho, mas avaliada pela coordenação como o único caminho para tentar reverter o quadro. Mesmo assim, Martorelli lembra que a campanha de Jarbas não respondeu judicialmente às acusações: “a gente reagiu de maneira política. Não me lembro de ter utilizado nenhum instrumento jurídico”.

Para Lavareda, esse caldo de ataques foi decisivo. Na análise dele, a comunicação, mais do que a política, determinou o resultado. “Foi a divulgação das notícias relativas a esse crime que mudou a sorte da campanha na reta final. Não fosse isso, Jarbas teria perdido a eleição”.

O guia eleitoral, os comícios e a virada final

A campanha cresceu também pela presença de artistas e pelo envolvimento da intelectualidade recifense, estímulo associado ao apoio de Arraes.

João Braga, coordenador da campanha, articulou uma série de showmícios que contavam com Reginaldo Rossi se apresentando até três vezes por noite na periferia da cidade. Outros nomes como Chico Buarque e José Wilker, sucesso na época com a novela Roque Santeiro, também se empenharam, reforçando uma estética de engajamento que dialogava com o eleitor popular.

Raul Henry relembra o impacto desses movimentos: “Fizemos comício na praia, fomos um estrondo. Vieram vários artistas. A coisa foi tomando corpo e viramos a campanha nos últimos 15 dias”, disse ele, relembrando que a campanha tinha três grandes comícios tradicionais, em Casa Amarela, Beberibe e Santo Amaro.

Sérgio Murilo Júnior reconhece que esse ambiente ajudou a moldar uma imagem positiva para Jarbas, ainda que não determinasse sozinho o resultado.

“Realmente houve o apoio de alguns artistas à candidatura de Jarbas, provavelmente em decorrência do apoio de Arraes à candidatura. Alguns artistas, talvez através do Guel Arraes, apoiaram Jarbas e isso, no guia eleitoral, é evidente que teve um peso, criou uma imagem boa para a candidatura de Jarbas. Mas só isso não seria suficiente para a vitória dele”, ponderou.

Acervo Pessoal de Sergio Murilo
Evento de campanha de Sergio Murilo na eleição municipal para prefeito do Recife de 1985 - Acervo Pessoal de Sergio Murilo

Já Martorelli atribui a ascensão jarbista à confluência de movimentos populares. O jingle “Jarbas é a cara do povo” consolidou essa percepção, marcando a identidade da campanha e, depois, da própria administração.

O advogado Humberto Vieira de Melo, que também integrou a equipe jurídica da campanha jarbista, lembra da imagem de peemedebista que Jarbas representava, ainda que filiado ao PSB.

“Jarbas era o candidato que se dizia a cara do PMDB. A campanha foi toda baseada neste elemento de ele ser a cara do PMDB. O candidato do PMDB não era ele, mas ele era a cara do PMDB”, relatou Humberto durante o Debate de Rádio Jornal desta sexta-feira (14).

Assista ao debate sobre a eleição de 1985

Paulo Rubem Santiago lembra que a campanha do PT foi marcada por poucos recursos, com apenas um carro de som — “uma caminhonete Veraneio” — que, segundo ele, rodava praticamente 24 horas por dia e servia de apoio para comícios.

O tempo de televisão dos petistas era mínimo, e o candidato Bruno Maranhão, embora militante histórico do PCBR, era eleitoralmente desconhecido, numa estrutura de campanha formada por poucos quadros experientes.

“Numa das idas a Casa Amarela, houve um problema mecânico e a caminhonete deu ré na ladeira e terminou tombando. Com sorte, ninguém se feriu. A gente levou na galhofa, ficou com as rodas de banda e a música tocando. A gente tentou sair dessa polarização para mostrar uma candidatura popular, autêntica, mas não conseguimos porque tínhamos pouca grana e pouco tempo de televisão”, contou Paulo Rubem.

Lavareda aponta o poder da mídia e da comunicação como determinantes para o resultado daquele pleito. “Eu trabalhei em mais de 90 campanhas eleitorais majoritárias no Brasil todo, e essa é uma das raras eleições em que a política não determinou o resultado da eleição. Essa é uma das raras campanhas em que foi a comunicação que determinou o resultado da eleição”, analisou.

O terceiro elemento: João Coelho e o voto descontente

Enquanto a disputa entre Jarbas e Sérgio Murilo se aprofundava, o vereador pedetista João Coelho ascendeu como terceira via. Jovem e distante das trocas de acusações, capturou votos de eleitores desapontados com o clima da campanha.

Coelho diz que nunca entrou na guerra pessoal travada entre os adversários, e que isso pode ter sido determinante para o bom desempenho. Ele terminou a disputa em terceiro lugar, somando quase 100 mil votos.

“Eu nunca me meti nisso. Ao contrário, botaram muitas histórias minhas também, que até hoje não existem. Acho que a conversa de política não é essa”, afirmou, lembrando que também foi alvo de ataques.

Enquanto Jarbas e Sérgio Murilo partiam para o ataque um contra o outro, os votos perdidos eram absorvidos por João Coelho. A crescente fez com que muitos acreditassem que se a campanha durasse tempo, João poderia ter vencido o pleito.

“Se a eleição passasse mais três semanas, João Coelho podia ter ter sido vitorioso, porque na ele chegou no dia da eleição crescendo bastante”, apontou o cientista político Antônio Lavareda.

Sergio Murilo Júnior concordou. “Ele fez uma campanha sem ataques, mais limpa. Muita gente se decepcionou com as campanhas do meu pai e de Jarbas, e votou nele. A candidatura de João Coelho pode ser que tenha prejudicado a candidatura do meu pai, porque a diferença foi muito pequena, e o crescimento dele pode realmente ter tirado votos necessários para o PMDB vencer aquela eleição”. Coelho terminou o pleito com 25 mil votos a menos que Murilo.

Acervo JC Imagem
Eleição de 1985 para prefeito do Recife - Acervo JC Imagem

O próprio Coelho acredita nessa possibilidade. “Se houvesse um pouquinho mais de tempo de campanha e segundo turno, eu ganhava de lapada contra qualquer um. Eu tinha a menor rejeição de todos, era uma possibilidade evidente. Todo mundo viu que a gente politicamente ganhou a eleição. Não ganhamos eleitoralmente, mas politicamente foi uma vitória”, analisou.

Ele lembra que se apresentava como contraponto buscando discutir a cidade enquanto os rivais se confrontavam. No dia da eleição, porém, prevaleceu o voto útil. “Encheram a cidade de camisa vermelha dizendo ‘vote em Jarbas para derrotar Sérgio Murilo’. Mas mesmo assim eu amanheci com 22%. Foi bom”, disse.

A dimensão histórica da disputa

De acordo com o Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TRE-PE), a apuração da eleição de 1985 foi encerrada perto das 18h do dia 22 de novembro, na Sala do Fichário do TRE-PE, na avenida Rui Barbosa.

Jarbas Vasconcelos foi eleito com 149.937 votos (35,19%). Sérgio Murilo ficou em segundo, com 125.503 votos (29,45%), seguido por João Coelho, que recebeu 99.635 votos (23,38%).

Acervo / Arte JC
Resultado da eleição para prefeito do Recife de 1985 no Jornal do Commercio - Acervo / Arte JC

Para quem viveu a campanha por dentro, o pleito representou tanto uma experiência formadora quanto um choque diante da intensidade da disputa no Recife pós-ditadura.

Raul Henry destaca que a campanha teve um nível de envolvimento emocional e físico muito superior ao observado hoje. Segundo ele, tudo dependia do contato pessoal e da propaganda na televisão, o que reforçava a pressão sobre as equipes.

“Essa eleição foi muito marcante para mim, porque foi a minha primeira eleição, uma eleição determinante para que eu entrasse na política de maneira profissional”, disse Raul Henry.

Para Paulo Rubem Santiago, a disputa de 1985 teve um peso especial para o PT, por ser a primeira eleição em que o partido enfrentava a capital do Estado com uma militância ainda muito jovem, formada sobretudo por sindicalistas.

Na época, o partido precisou lidar com críticas de setores da própria esquerda, que enxergavam no PT uma postura divisionista. Com a saída de Jarbas do PMDB e sua filiação ao PSB, setores populares de esquerda migraram para apoiar a candidatura dele, enquanto o PT acabou “praticamente sozinho”.

“O resultado eleitoral não foi o esperado, mas a gente tirou muitas lições, principalmente no sentido de reforçar a presença constante do partido nos bairros, na luta pela moradia. Mas valeu, porque é assim que a gente foi se construindo”, afirmou.

No próximo dia 3 de dezembro, o Centro Pernambucano de Debates Políticos e Sociais (Debate), realizará um encontro para celebrar os 40 anos da primeira eleição pós-redemocratização e a vitória de Jarbas.

O tema do encontro será “Esse cara é a cara da democracia”. A reunião começa às 17h, na rua do Jasmim, no bairro da Boa Vista, no Recife.

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