Concessões de hidrovias avançam com promessa de modernização e corte de custos
Governo Lula aposta em concessões de rios estratégicos para reduzir gargalos logísticos; modelo levanta alertas sobre impacto social e transparência

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O Governo Federal deu um passo decisivo para transformar a infraestrutura logística do Norte do Brasil.
Por meio do Decreto nº 12.600, assinado em 28 de agosto de 2025, foram incluídas as hidrovias dos rios Madeira, Tocantins e Tapajós no Programa Nacional de Desestatização (PND), abrindo caminho para concessões à iniciativa privada.
Na prática, trata-se da delegação da operação e manutenção dessas hidrovias para empresas privadas, que deverão investir em melhorias, como dragagem e sinalização, com retorno financeiro garantido parcialmente por recursos públicos e parcialmente por tarifas de uso.
O modelo é classificado como concessão, mas tem despertado críticas por lembrar processos de privatização disfarçada, sem o uso direto do termo. Para críticos, trata-se de mais um caso em que o Estado transfere ativos públicos estratégicos à gestão privada, mantendo os riscos com o poder público.
Alvo estratégico
A justificativa do governo é técnica e econômica: melhorar o transporte hidroviário, considerado subutilizado no Brasil, com apenas 6% de participação na matriz nacional de transportes.
O objetivo central é reduzir os custos logísticos do agronegócio, escoando a produção com mais eficiência pelos portos do Norte, na chamada região do Arco Norte.
Segundo o Ministério de Portos e Aeroportos, o potencial de economia pode chegar a 40% no transporte de cargas.
A expectativa é que, ao reduzir a dependência das rodovias, as concessões contribuam também para a redução das emissões de carbono.
“Cada 25 barcaças equivalem a 500 caminhões a menos nas estradas”, argumenta a pasta.
Quais hidrovias
O decreto abrange três empreendimentos federais:
- Hidrovia do Rio Madeira: de Porto Velho (RO) à foz do Rio Amazonas, em Itacoatiara (AM), com 1.075 km.
- Hidrovia do Rio Tocantins: de Belém (PA) a Peixe (TO), com 1.731 km.
- Hidrovia do Rio Tapajós: entre Itaituba (PA) e Santarém (PA), com 250 km.
A Hidrovia do Madeira está em estágio mais avançado. A estatal Infra S.A. já concluiu o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), apresentado à Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) em abril.
A previsão inicial de leilão foi adiada para o primeiro semestre de 2026, após críticas de parlamentares do Amazonas.
Modelo de concessão
A concessão da Hidrovia do Madeira, que servirá de modelo para as demais, terá contrato inicial de 12 anos.
A empresa concessionária assumirá a responsabilidade de garantir a navegabilidade durante todo o ano, o que exigirá cerca de R$ 109 milhões em investimentos, distribuídos em:
- Obras de dragagem
- Sinalização e balizamento
- Gestão ambiental e de tráfego
- Estudos hidrográficos
- Operação e recuperação de seis terminais de passageiros (IP4 — Instalações Públicas de Pequeno Porte)
A condução do processo está sob responsabilidade do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o mesmo que lidera a modelagem da concessão do Metrô do Recife. Neste caso, o leilão também está previsto para 2026, com início da operação privada em 2027.
Ambos os projetos utilizam o mesmo tipo de parceria: o setor privado assume a operação e os investimentos, enquanto o Estado arca com parte significativa da remuneração, via fundos públicos.
Como será pago
A remuneração da concessionária será mista:
- 80% virá da Conta de Desenvolvimento da Navegabilidade, fundo público criado para estimular o transporte hidroviário.
- 20% virá da cobrança de tarifas de uso para embarcações que transportam cargas (grãos, combustíveis, fertilizantes).
- Não haverá cobrança de tarifa para passageiros ou pequenas embarcações sem fins comerciais, como pesqueiras ou barcos de turismo comunitário.
Tensões e críticas
Apesar da promessa de eficiência e desenvolvimento, o projeto enfrenta críticas técnicas e sociais. No caso da Hidrovia do Tocantins, a principal polêmica gira em torno do Pedral do Lourenço, uma formação rochosa de 40 km que impede a navegação em parte do ano.
Mesmo com licença do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedida em maio, o derrocamento (remoção por explosivos ou escavações) foi suspenso por decisão da Justiça Federal no Pará, após ação do Ministério Público Federal (MPF).
O MPF alerta para lacunas no processo de licenciamento, impactos não estudados sobre a pesca e a biodiversidade, além da falta de consulta prévia, livre e informada a comunidades ribeirinhas, como previsto pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Visão crítica do modelo
De forma mais ampla, analistas questionam o modelo de concessão adotado.
Embora o governo evite os termos “privatização” ou “parceria público-privada (PPP)” em seus documentos, o movimento é visto como parte de um processo de entrega de ativos públicos à iniciativa privada, com baixa participação social no debate.
Os críticos observam que as hidrovias, sendo bens naturais e estratégicos, devem ser tratadas com cuidado especial.
O modelo em questão prevê tarifas futuras para operadores comerciais, mas o grosso da remuneração virá de um fundo público — o que pode representar socialização dos riscos e privatização dos lucros.
Além disso, a concentração da infraestrutura logística em poucos operadores privados pode reduzir o controle público sobre rotas e fluxos essenciais para a economia nacional, especialmente do agronegócio.
O que vem a seguir
O próximo passo será a análise dos estudos pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Se aprovados, o edital da Hidrovia do Madeira deve ser lançado no início de 2026.
A partir desse piloto, os modelos para Tocantins e Tapajós poderão seguir caminhos semelhantes.
Enquanto o governo aposta na modernização via concessões, o desafio será conciliar eficiência logística com transparência, controle social, proteção ambiental e inclusão das comunidades afetadas.