STF valida o risco na garupa
Em decisão sem sensatez, o Supremo Tribunal Federal dá ganho de causa ao transporte de motos por aplicativo, ignorando a crise na saúde pública
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A questão não é apenas de acessibilidade, nem de oferta e demanda. A explosão dos serviços de transporte de motocicletas por aplicativos no Brasil atingiu em cheio a saúde pública, com dados expressivos em todo o país. Médicos, plantonistas e gestores de saúde tinham a esperança que a Justiça compreenderia a dimensão e as faces do problema, buscando no mínimo respaldar a proteção dos cidadãos que escolhem esse tipo de transporte e caem na armadilha do alto risco da mobilidade sem regulação nem segurança. Mas não foi a compreensão do Supremo Tribunal Federal (STF). Em decisão que se afasta da sensatez, e se aproxima da liberalização temerária do risco na garupa, os juízes máximos da nação resolveram que a população tem o direito de escolher o meio de transporte que lhe convier. No limite do argumento, o STF poderia declarar impróprio o uso do cinto de segurança, já que violaria o direito de escolha individual pelo risco assumido.
O leitor do JC tem acompanhado as estatísticas assustadoras que relacionam o aumento da ocupação de leitos, nas emergências e nos procedimentos de cirurgias e tratamentos, em Pernambuco e no resto do território nacional, em decorrência de sinistros envolvendo condutores e passageiros de motos. É verdade que, especialmente em nosso estado, a ausência de modais de transporte público castiga o pernambucano e o turista, sem metrô decente, e com ônibus insuficiente e de baixa qualidade em diversos trajetos. Mas a substituição de um problema por outro não resolve nada, ainda mais quando se atinge em cheio a saúde pública, cuja estrutura do SUS já demandava modernização e melhorias antes do advento das mototáxis.
A validação legal é uma festa para as empresas que prestam o serviço, uma desculpa para os maus gestores que não oferecem transporte coletivo para a demanda da população, e uma permissão de risco para os usuários desse tipo de serviço, que muitas vezes não sabem como suas vidas podem ser alteradas, para pior, por causa da aparente vantagem do deslocamento sobre duas rodas – que jamais poderia ser cogitado como alternativa ao transporte coletivo, em um país onde o trânsito já é caótico, sobretudo nas grandes cidades e regiões metropolitanas.
O STF rotulou como inconstitucional uma lei estadual de São Paulo para regulamentar e restringir o transporte remunerado de passageiros com motos. Obviamente, a jurisprudência vai se espalhar e inibir qualquer iniciativa semelhante no âmbito de estados e municípios. A decisão se deu em plenário virtual, tamanha a desimportância da Corte sobre o assunto. Pela legislação paulista, os municípios deveriam autorizar o serviço para sua implementação por empresas de aplicativos. A relatoria coube ao ministro Alexandre de Moraes, para quem o dispositivo legal de São Paulo constituía um “obstáculo injusto” aos mototaxistas.
O interesse coletivo, para o qual o Supremo deve sempre voltar a atenção, foi solenemente ignorado pela decisão. E ao invés de o transporte de risco se submeter às condições que não elevem os riscos à integridade dos indivíduos e à saúde pública, são estes que terão que se adequar, se puderem, a insensatez liberada do transporte por motocicletas.