Precisamos rever as emendas parlamentares
O que de fato democratiza o orçamento é permitir que o povo decida diretamente onde quer aplicá-lo, e que o Executivo eleito cumpra essa vontade
Clique aqui e escute a matéria
Minha posição contra as emendas impositivas não é de hoje. Há muito tempo defendo que meu próprio partido, o PT, renuncie ao volume extraordinário de emendas para que os recursos sejam usados pelo Governo Federal, eleito pelo povo para gerir o orçamento, e não pelo parlamento. A missão do Legislativo é outra -legislar e fiscalizar - e não substituir o Executivo na execução orçamentária.
Tenho experiência prática: como prefeito do Recife, vi de perto como cada valor mínimo faz diferença no planejamento e na execução de obras e programas que transformam a vida das pessoas. O Executivo legitimamente eleito conta com um corpo técnico e um programa aprovado nas urnas para isso.
O que vemos em Brasília, contudo, é o fortalecimento crescente do Legislativo sobre o orçamento federal. Com o governo de Jair Bolsonaro, que não tinha um projeto coerente nem políticas estruturadas, o Congresso ganhou protagonismo orçamentário, como forma de garantir apoio sem exposição. Desde então, as chamadas emendas impositivas só aumentam, acompanhadas por emendas de bancada e de comissões. Em 2024, esse conjunto custou mais de R$ 44,67 bilhões autorizados - um valor estratosférico. Ao fracionar esse montante em milhares de pequenos projetos, o orçamento deixa de ser um plano integrado de políticas públicas e se torna um mosaico de interesses dispersos, dificultando a coordenação das ações que o país realmente precisa. Daí surgem distorções absurdas. Atualmente, a deputada Julia Zanatta (PL-SC) é investigada por destinar emenda parlamentar no valor de R$ 800 mil em benefício do clube de tiro de seus aliados.
Para efeito de comparação, nenhum parlamento de país desenvolvido opera com uma carga de emendas como a do Brasil. Um estudo do Insper, publicado em 2022, concluiu que o uso de emendas parlamentares em nosso país "destoa do padrão" observado nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne economias mais avançadas. I
Em países como Canadá ou Austrália, por exemplo, o orçamento é definido exclusivamente pelo Executivo; o Parlamento apenas supervisiona os gastos - não há emendas legislativas. Já em nações como Itália, Portugal e Espanha - onde permissões existem - o volume direcionado por emendas representa menos de 1% das despesas não obrigatórias. No Brasil, o dado mais recente aponta que cerca de 24% da despesa discricionária primária está sob indicação do Congresso - algo sem paralelo no mundo desenvolvido.
Esse montante supera verbas de ministérios essenciais como Ciência e Tecnologia, Cidades e Transportes - pastas que poderiam receber recursos muito mais bem aplicados dentro de programas com metas transparentes, objetivos estratégicos, e monitoramento contínuo. Além disso, a distribuição das emendas não segue a necessidade real da população mais pobre, mas o poder político de cada gabinete. Municípios menores ou com menos força política recebem menos, reforçando desigualdades históricas. E, muitas vezes, a emenda garante apenas uma placa de inauguração e uma conquista simbólica; não garante os custos permanentes de manutenção - de creches, unidades básicas de saúde, praças, UPAs - o que termina por estrangular o orçamento de custeio de estados e municípios.
Não nego que parlamentares devam contar com algum recurso para atender demandas locais pontuais - mas jamais em volumes crescentes e imprevisíveis. Ao contrário dos que argumentam que as emendas democratizam o orçamento, afirmo que elas causam uma grave distorção: sobrepõem o Legislativo ao Executivo e transformam o orçamento público num instrumento de poder e troca política, e não de planejamento.
O que de fato democratiza o orçamento é permitir que o povo decida diretamente onde quer aplicá-lo, e que o Executivo eleito cumpra essa vontade. Foi esse o princípio que fundou minha experiência como prefeito: orçamento participativo, diálogo com comunidades, priorização real das necessidades populares - não pelo peso do mandato individual, mas pela voz coletiva. No Parlamento, nossa principal obrigação deveria ser legislar para melhorar a vida das pessoas, e exigir que os outros poderes cumpram essas leis.
O aumento das emendas não é prioridade para o povo e não deve ser prioridade do parlamento. A prioridade real da sociedade é ter serviços públicos funcionando, cidades menos desiguais e orçamentos responsáveis que não sejam desmontados por obras sem custeio nem improvisos. Precisamos de um debate sério, republicano e equilibrado sobre o papel das emendas parlamentares, com a defesa da democracia, da separação de poderes e do interesse público acima de qualquer disputa por fatias do orçamento.
João Paulo , deputado estadual do PT e foi prefeito do Recife (2001-2008)