Emendas parlamentares impositivas, transparência e orçamento democrático: necessidade de um debate mais aprofundado sobre o tema
É desejável um debate sério e qualificado que discuta o instituto à luz da Constituição da República, aprimore a regulamentação
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O debate sobre as emendas parlamentares impositivas voltou às páginas da imprensa Pernambucana nos últimos dias, em face da provável votação de uma PEC na Alepe que ajusta o percentual que deve ser observado nos orçamentos anuais.
Entretanto, regra geral, o debate é fundado em críticas perpetradas sem qualquer aprofundamento e sem base em dados estatísticos ou estudos sérios sobre o tema. Em matéria publicada no Jornal do Commercio do último domingo, sugere-se um contraste entre a realidade fiscal de Pernambuco e a ampliação das emendas parlamentares. A provocação é válida — mas o assunto exige um debate mais aprofundado.
Inicialmente, importante esclarecer que as emendas impositivas não são um benefício para os deputados; na verdade, são um mecanismo constitucional de participação do Poder Legislativo na definição das prioridades do gasto público, que historicamente esteve concentrada no Executivo. É claro que podem trazer benefícios políticos aos parlamentares, mas isso é inerente à atuação política e não é a finalidade central que norteia o instituto.
Ainda, é necessário dizer que a Constituição Federal disciplina o processo legislativo orçamentário e não cria, tal como fez a Constituição Pernambucana, qualquer progressão de percentuais de emendas parlamentares ao longo dos anos, destoando, assim, do modelo federal, que, conforme será referido adiante, é de observância compulsória pelos Estados e Municípios.
De fato, do ponto de vista constitucional, o STF deixou claro nas recentes decisões proferidas na ADPF nº 854, seguindo jurisprudência há muito consolidada, que as normas federais sobre processo legislativo orçamentário vinculam os entes subnacionais. O relator, Ministro Flávio Dino, determinou a adaptação dos Estados e Municípios ao "modelo federal" de transparência e rastreabilidade e condicionou a execução das emendas do orçamento de 2026 à demonstração, perante os Tribunais de Contas, de plena observância desse modelo. Também atribuiu aos próprios Tribunais de Contas a tarefa de editar atos normativos específicos e a fiscalização da implementação dessas exigências.
Dessa forma, não é uma mera faculdade dos Estados reformularem suas normas para se adequarem ao modelo federal, mas sim uma obrigação decorrente do necessário cumprimento de decisão impositiva do STF.
Por outro lado, relevante pontuar que o modelo de execução das emendas parlamentares impositivas foi recentemente depurado pelo Supremo Tribunal Federal, tendo sido impostas regras estritas de transparência e rastreabilidade que se aplicam também a Estados e Municípios.
A crítica de que "emendas empobrecem o Estado" ignora o desenho institucional que justifica sua existência. A literatura especializada sustenta que a participação do Legislativo melhora a representação territorial de demandas e corrige a dependência histórica do orçamento em relação à conveniência do Executivo.
Sergio Werlang, em trabalho publicado no blog do IBRE da FGV, em 13 de agosto de 2025, lembra que emendas impositivas "são um avanço democrático" e reduzem a manipulação decorrente do contingenciamento discricionário, ao mesmo tempo em que permitem alocação descentralizada e potencialmente mais aderente às necessidades locais.
No mesmo sentido, o cientista político Sergio Praça, em artigo publicado no dia 15 de agosto de 2025 na Folha de S. Paulo, argumenta que o poder direto do Parlamento sobre uma fração do orçamento é desejável por razões informacionais: parlamentares se relacionam com prefeitos — atores que conhecem melhor as carências do cidadão — e isso pode gerar resultados sociais mensuráveis; eventual ganho eleitoral, quando há regras e publicidade, não desnatura a política pública.
Emendas "secretas" ou sem lastro documental são indefensáveis. Emendas impositivas com publicidade ativa, trilhas de auditoria e controle externo, ao contrário, integram o arranjo democrático de checks and balances entre poderes. Werlang, no trabalho acima referido, sublinha exatamente essa diferença: "as emendas secretas são péssimas; as impositivas transparentes são boas".
Não se está aqui a dizer que, mesmo após as intervenções do STF, não mais existem falhas no modelo brasileiro de emendas parlamentares impositivas. É sim possível ainda evoluir. Mas também fechar os olhos para os avanços é algo que não se mostra adequado para um debate saudável sobre o tema.
O modelo operacional hoje exigido pelo STF é objetivo. Para transferências especiais — as chamadas "emendas PIX" — a execução depende de Plano de Trabalho previamente aprovado na plataforma oficial de transferências e de divulgação integral de valores, finalidade e beneficiários no Portal da Transparência. Na saúde, a destinação deve observar previamente as diretrizes dos gestores do SUS, reforçando racionalidade e alinhamento a políticas públicas; e, quando cabível, determina-se conta bancária específica por emenda, veda-se "conta de passagem" e saques em espécie, com integração à plataforma oficial de transparência.
As exigências acimas destacadas convivem com o controle concomitante do Executivo, através de suas controladorias internas, e do controle externo levado a efeito pelos Tribunais de Contas, que auditam e cruzam dados, e do Ministério Público — um ecossistema de governança que desestimula e combate o uso indevido das emendas parlamentares.
Também é preciso lembrar que as emendas parlamentares impositivas não são uma "jabuticaba" brasileira. Nos Estados Unidos, após uma moratória informal entre 2011 e 2021, as earmarks (verbas orçamentárias federais direcionadas a projetos específicos em estados, distritos ou localidades, geralmente a pedido de um congressista) foram reintroduzidas com regras de publicidade prévia, objeto específico e limites quantitativos — experiência frequentemente citada como referência comparada útil ao debate brasileiro. Em alguns ciclos orçamentários, por exemplo, operou-se um teto próximo a 1% das despesas discricionárias, sinalizando como democracias maduras trabalham com limites e transparência em vez de demonizar o instrumento.
Em Pernambuco, o ponto jurídico de partida é direto: por se tratar de matéria de processo legislativo orçamentário, as balizas federais irradiam-se sobre a Constituição Estadual. Se o texto local fixa percentuais ou regimes em descompasso com a Constituição Federal — que não prevê progressões temporais com relação aos percentuais que devem ser observados nos orçamentos anuais — há um problema de simetria a ser corrigido. A adequação normativa é exigência de constitucionalidade e de governança, não um "cheque em branco" para gastos.
Divergências embasadas sobre utilidade marginal, desenho e tamanho das emendas cabem no debate público. O que não se sustenta é o atalho retórico que confunde ajuste de simetria constitucional com privilégio corporativo, ou que ignora a existência de um roteiro claro de transparência, prestação de contas e fiscalização aprovado pelo STF e exigível pelos órgãos de controle.
As próprias decisões do STF na ADPF n° 854 preveem que a execução de 2026 só se inicia após o atesto dos Tribunais de Contas quanto ao cumprimento integral das regras federais, o que inclui portais unificados, migração de transferências para plataforma oficial, exigência prévia de planos de trabalho nas emendas PIX, observância às diretrizes dos gestores do SUS na destinação para a área de saúde, entre tantas outras imposições destinadas a aperfeiçoar o modelo de execução das emendas impositivas.
Em suma: distorções podem ocorrer com qualquer instituto jurídico; a resposta republicana é aperfeiçoar regras, não abolir mecanismos. É exatamente isso que o STF vem promovendo, ao condicionar a execução das emendas a padrões rigorosos de transparência e rastreabilidade e ao fortalecer o papel dos Tribunais de Contas, controladorias internas e Ministério Público.
Um modelo transparente, com dados abertos e controles múltiplos, permite que as emendas cumpram sua finalidade: financiar políticas que façam diferença no cotidiano do cidadão, especialmente quando informadas por quem conhece a realidade local. É desejável, pois, um debate sério e qualificado que discuta o instituto à luz da Constituição da República, aprimore a regulamentação e compare experiências internacionais, em vez de reciclar caricaturas que nada acrescentam ao interesse público.
Paulo Fernandes Pinto, procurador da Assembleia Legislativa de Pernambuco, ex-procurador do Ministério Público de Contas e advogado especialista em Direito Público Eleitoral