40 anos: o país urbano volta às urnas - As primeiras eleições diretas nas capitais pós ditadura
Após duas décadas de regime militar (64-85), as eleições diretas para prefeitos das capitais simbolizaram um marco da redemocratização nacional
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Após duas décadas de regime militar (1964-1985), as eleições diretas para prefeitos das capitais brasileiras simbolizaram um marco da redemocratização nacional. Desde o Ato Institucional nº 3, de fevereiro de 1966, a escolha dos prefeitos das capitais e de áreas consideradas de "segurança nacional" havia sido retirada do voto popular — esses cargos passaram a ser preenchidos por indicação dos governadores e chancela do presidente da República. Assim, durante quase vinte anos, as principais cidades do país — entre elas Recife, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro — foram administradas sem consulta direta à população.
No Brasil, o mais significativo dessa mudança foi acompanhado por segmentos políticos e intelectuais, diante de fatos que começavam a ocorrer em parte da Europa, recriando novos conceitos para a ampliação da representação da sociedade nos regimes democráticos. Depois que o governo militar impôs, de forma desesperada, o voto vinculado de 1982, já não era mais possível experiências que escamoteassem a essência do voto. Podia-se até discutir alternativas, como a ampliação das alianças políticas, mas tudo dentro do escopo da universalidade do voto livre e soberano. Na época, discutia-se nas universidades e em segmentos partidários a Transição Espanhola, após a morte de Franco — experiência marcada pela conciliação entre antigos franquistas moderados e forças democráticas (socialistas, comunistas, liberais e regionalistas), tornando-se um modelo internacional de reconstrução institucional pacífica.
O pacto político que a sustentou — simbolizado pelos "Pactos de la Moncloa" (1977) — foi visto como uma solução pragmática e madura num continente ainda dividido pela Guerra Fria. Conceitos, aliás, repudiados no Brasil por grupos que ainda nutriam a ideia de uma revolução socialista nos moldes do século XIX. Por outro lado, muitos analistas e importantes dirigentes políticos consideravam que a democracia liberal tradicional já não dava conta da complexidade e das aspirações maiores da sociedade. Para ficar claro: a democracia tradicional era fundamental, mas não suficiente para preencher os requisitos de um Estado moderno, que precisava responder a questões para além da dicotomia classista.
Os ventos dos anos 1970/80 traziam no cerne os conceitos de hegemonia que levavam a uma maior influência do pluralismo social nas decisões e inovações das políticas públicas, como condição fundamental para definir os limites das transições entre regimes autoritários e novos sistemas democráticos de governo. O problema é que esses novos mecanismos democráticos precisavam traduzir instrumentos eficientes na elaboração de políticas diferenciadas, que possibilitassem a aceitação de uma hegemonia com força e clareza suficientes para garantir as mudanças pretendidas por administrações progressistas. O problema transcende as limitações do sistema representativo — o que levou os autores catalães Jordi Borja e Preteceille a destacarem o significado dos movimentos sociais na criação de uma nova perspectiva de sociedade. Ou seja, independentemente das demandas por uma melhor distribuição de recursos, o veículo estruturador dessa nova organização social seria a inclusão de novos mecanismos de poder na definição e no controle das políticas públicas.
Surgia a cidade como o locus privilegiado para a realização desse imbricamento entre o cidadão, a sociedade e a Administração — motivo que aumentava a importância das forças progressistas em conquistar posições nas instâncias locais de poder, como forma de aprofundar seus vínculos com a sociedade. Sobre esse tema, cabe lembrar o documento orientador da política de democratização da Prefeitura Socialista de Barcelona, ao afirmar que "a democracia territorial que corresponde às necessidades de nossa época somente se constituirá sobre bases locais". Em resumo, a democracia se expandiria unicamente se se desenvolvessem as instituições políticas participativas locais. É ilustrativo considerar esse importante avanço nos conceitos de redemocratização negociada do Brasil.
As mudanças políticas e conceituais que ocorriam em outros países não deixavam de contribuir para enfraquecer os fundamentos ideológicos da ditadura brasileira — sem ser, naturalmente, causa fundamental na transição política nacional. Nesse clima, em 15 de novembro de 1985, milhões de brasileiros foram às urnas em ambiente de festa cívica para configurar o poder nos espaços com mais identidade ideológica no Brasil. O pleito ficou marcado pela presença de lideranças que haviam sido protagonistas da resistência democrática e das Diretas Já, como Luiza Erundina, Jarbas Vasconcelos, Roberto Freire, Maria Luíza Fontenele, Fernando Gabeira e Fernando Henrique Cardoso. Essa eleição foi também a primeira, em muitas cidades, a registrar vitórias expressivas de partidos recém-criados no período de abertura, como o PT e o PDT.
A vitória de Maria Luíza Fontenele (PT) em Fortaleza representou um símbolo da renovação política e do avanço das forças populares, independente do grupo vitorioso estar plenamente preparadas para o exercício do poder. Em Recife, Jarbas Vasconcelos (PMDB) foi eleito em aliança com setores progressistas, reeditando a Frente Popular que se formara na cidade em 1965 e iniciou mudanças que seriam confirmadas pela Assembleia Constituinte.
Em São Paulo, Jânio Quadros (PTB) reviveu o populismo tradicional, configurando um processo desigual na absorção política pela maioria da população da metrópole de maior composição operária do Brasil — um resultado que refletia um processo desigual que iria marcar o país. Essas eleições foram mais do que um exercício de cidadania: constituíram um rito de passagem entre o autoritarismo e a democracia, um reencontro da sociedade com a soberania do voto e uma antecipação do processo constituinte de 1988. Elas consolidaram o espaço urbano como campo de disputa política e de afirmação das novas agendas — populares, feministas e trabalhistas — que marcariam o Brasil nas décadas seguintes.
José Arlindo Soares, doutor em Sociologia e atual Presidente de Centro Josué de Castro