Os humanos, a fé e a IA na medicina
Como dizia meu pai em sua fé, depois que surgiu a informática, estar presente em todos os lugares ao mesmo tempo deixou de ser exclusividade de Deus.
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O Dr. Richard Clarke Cabot foi o primeiro editor do "Case Records of the Massachusetts General Hospital". Por volta de 1910 inaugurou o formato de conferências clínico-patológicas daquele hospital e em 10 de janeiro de 1924 fez a primeira publicação no "The New England Journal of Medicine". Há mais de 1 século, semanalmente, o mundo aprende com os tais casos clínicos. Antes, a revista nos chegava de navio, com meses de atraso. Agora, às quartas feiras, chega on-line ao mesmo tempo para todos os assinantes no mundo.
Em homenagem ao Dr. Cabot foi criado o sistema "Dr. CaBot AI" para gerar diagnóstico diferencial no estilo do que vem sendo feito até hoje pelos especialistas. O sistema produz texto e vídeo usando as informações do caso, pesquisando milhões de artigos da literatura médica e mais de 6.000 casos já discutidos na reunião. Elabora o "raciocínio" diagnóstico suportado por referências relevantes, interpreta textos e imagens e, de imediato, gera toda a argumentação em uma apresentação de slides.
Pela primeira vez a tradicional reunião incorporou a IA na análise de um caso e publicou o resultado em um vídeo de 5 minutos e 43 segundos, sem correções, em paralelo ao método tradicional produzido por um humano especialista.
Os dois foram brilhantes e, partindo do princípio de que no dia a dia não poderemos contar com os grandes especialistas que são convidados para participar do "Massa", o "Dr. CaBot AI" leva a vantagem de poder estar presente em todos os lugares ao mesmo tempo.
Como dizia meu pai em sua fé, depois que surgiu a informática, estar presente em todos os lugares ao mesmo tempo deixou de ser exclusividade de Deus e só os "bestas" não haviam se dado conta de que era possível. "Não tenho culpa se muitas pessoas não entendem que Deus envolve tecnologia avançada, quase inacreditável e por isso é preciso ter fé", pregava.
Aqui, sob a coordenação da Dra. Izabel Primo, como parte do programa de Residência Médica do Hospital Getúlio Vargas, os casos são analisados e discutidos às quintas-feiras. Em geral são complexos, muitas vezes raros ou curiosos, mas com um grande volume de ensinamento. Ao final da discussão, depois da opinião dos doutorandos, residentes e preceptores, tem-se acesso aos desdobramentos, à conclusão e conduta terapêutica da equipe do Massachussetts General Hospital.
Para opinar, é preciso se debruçar, estudar, atualizar conceitos, incorporar novas técnicas e revisitar fundamentos o que ocupa algumas horas no já corrido dia a dia dos médicos.
Em um dos últimos apresentados no HGV, depois dos estudos, alimentei a IA com a informação de que havia tosse, febre, AIDS com imunossupressão profunda e uma imagem radiológica do tórax. Em segundos o diagnóstico diferencial foi apresentado com as indicações dos caminhos a percorrer. Considerei a qualidade e abrangência da análise superiores ao resultado das minhas 2 horas de estudo. A IA não esqueceu nada, porém a radiografia apresentava uma falha no posicionamento do paciente e ela se confundiu na interpretação, como se não estivesse preparada para a possibilidade de um defeito técnico. Pelo menos em um quesito falhou, mas apesar disso chegaria ao diagnóstico. Na "cabeça" da IA não seria possível que um ser humano fosse capaz de realizar uma radiografia sem o posicionamento correto, seja por distração do técnico ou dificuldade do paciente.
A IA deve ter resmungado com ar de enfado: "esses humanos, sei não viu, não fazem nada direito, o exame deveria ter sido executado por um robô".
Agora só falta ressuscitar os mortos e quando conseguir será uma pena meu pai não estar mais aqui para ver e comentar: bem que eu disse que podia, bando de cabra besta!
*Dr. Elimário Cardozo, alegria e orgulho, parabéns pelo "Dores em salva" e o Prêmio Jabuti de contos 2025.
Sérgio Gondim, médico