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Desdolarização

Lula parece uma espécie de porta-voz da China, maior ator no comércio internacional que já vem criando outros meios de troca comercial no planeta.

Por SÉRGIO C. BUARQUE Publicado em 29/10/2025 às 0:00 | Atualizado em 29/10/2025 às 8:15

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O presidente Lula da Silva é o maior propagandista da desdolarização do comércio mundial para acabar com a dominância do dólar como meio de troca e de reserva de valor internacional. Na Malásia, durante a reunião da ASEAN, ele voltou a defender o comércio entre países com moedas próprias, sem uso do dólar: O "século XXI, afirmou, exige que tenhamos a coragem que não tivemos no século XX. Exige que a gente mude alguma forma de agir comercialmente para não ficarmos dependentes de ninguém", lamentando o limitado comércio entre os dois países, como se fosse culpa da moeda norte-americana. Na realidade, como meio de troca, a moeda norte-americana não tem responsabilidade pela maior ou menor intensidade do comércio externo do Brasil.

Na sua campanha contra o dólar, Lula parece uma espécie de porta-voz da China, maior ator no comércio internacional que, sem fazer barulho, já vem criando outros meios de troca comercial no planeta. Na verdade, a mudança no padrão monetário mundial tem sido um processo natural que decorre de dois fatores: 1. o excesso de liquidez internacional em dólar. decorrente da elevada dívida pública dos Estados Unidos e dos déficits comerciais, despertam alguma desconfiança em relação à moeda norte-americana; 2. a emergência da China como uma grande potência comercial intensifica e amplia o comércio bilateral fora da alçada dos Estados Unidos e, portanto, do dólar.

A dívida pública dos Estados Unidos alcança 36 trilhões de dólares, dos quais 6,4 trilhões dos títulos públicos estão em poder de vários países, principalmente Japão, China e Reino Unido. E como a China é o principal parceiro de 122 países, a moeda chinesa, o yuan, já tem sido utilizada como meio de troca e mesmo reserva de valor por várias nações (o Brasil tem pouco mais de 5% do total das reservas de divisas em yuan). No entanto, diferentemente do discurso de Lula, os chineses não parecem interessados em substituir o dólar pela sua moeda, seja porque é difícil, seja pelo risco de provocar um desequilíbrio no comércio internacional, preferindo avançar no sistema de pagamentos digital interbancário que tem como referência a moeda chinesa.

A utilização de qualquer moeda como meio de troca ou reserva de valor depende da confiança dos agentes econômicos e dos cidadãos na sua estabilidade e permanência, assim como transparência em relação às decisões de política macroeconômica. O dólar surgiu como moeda de referência internacional no acordo de Bretton Woods que estabelecia um lastro em ouro para a moeda norte-americano (US$ 35 por onça de ouro). A convertibilidade da cotação foi suspensa em 1971 precisamente pelo excesso de liquidez mundial em dólar, mas, mesmo assim, o mundo continuou utilizando o dólar como referência pela confiança na economia e na transparência da política monetária dos Estados Unidos, incluindo a independência do Federal Reserve (Banco Central). Esta confiança, importante lembrar, está sendo abalada pelo governo desastroso de Donald Trump que, entre outras coisas, tenta interferir no Banco Central.

O presidente Lula defende a criação de uma moeda vinculada ao BRICS que reúne países muito diferentes em termos econômicos e políticos, grande parte sem qualquer transparência da política monetária e macroeconômica. Ou, quando é menos enfático, ele propõe o comércio bilateral nas moedas dos países, como reiterou agora na Malásia. E a confiança e estabilidade das respectivas moedas? Imagine os exportadores brasileiros vendendo para o Irã, por exemplo, recebendo em Rial e o Banco Central do Brasil incluindo esta moeda nas nossas reservas, ou, para chegar mais perto, Brasil exportando para a Argentina para receber pagamento em peso argentino com toda a instabilidade da moeda e mais ainda da política do país vizinho. A grande questão que Lula esquece é a referência de estabilidade e confiança no valor das transações ao longo do tempo; quanto vão valer no futuro as reservas em Rial ou Peso que o Brasil acumulou com a exportação para o Irã ou a Argentina? Na ausência de confiança, a troca se dá em uma terceira moeda, no caso, o dólar.

Sem nenhum alarde ou discurso de desdolarização, a China já está operando o sistema CIPS (Cross-Border Interbank Payment System), criado em 2015 como uma plataforma de moedas digitais dos bancos centrais associados. Como um sistema de pagamentos internacionais, o CIPS facilita e agiliza a compensação e a liquidação de transações em yuan (ou Renminbi, RMB) intensificando o comércio da China com o resto do mundo e consolidando a moeda como referência monetária alternativa ao dólar. A confiança no sistema CIPS reside na confiabilidade da moeda chinesa e nos mecanismos de pagamento e liquidez, que minimizam os riscos, e na poderosa base econômica da China, segunda maior economia do mundo. Em todo caso, apesar da atual estabilidade e credibilidade da moeda chinesa, falta à China a transparência na política monetária e a atuação de um Banco Central independente na gestão da moeda.

Parece razoável supor que, no futuro, a convivência e o uso alternativo de duas moedas de referência na economia mundial, como um padrão dual - dólar e yuan - com cotação flutuante entre eles, de modo a permitir uma diversificação das moedas nas trocas internacionais e nas reservas dos bancos centrais. Não é necessária uma nova reunião de Bretton Woods ou algo parecido para discutir e aprovar um novo padrão monetário na medida em que o processo de reorganização da economia mundial, com a emergência da China e a formação de dois grandes blocos, levando a esta configuração. Desde que Trump, recusando aceitar o mundo real, não provoque novos grandes tumultos na economia mundial, se isolando e deixando a China comandando a nova ordem econômica global.

Sérgio C. Buarque, economista

 

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