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Flávio Brayner: Herzog e o Dia da Democracia

A Democracia moderna, numa sociedade bem mais complexa, numerosa e dividida, promoveu uma espécie de alienação

Por FLÁVIO BRAYNER Publicado em 28/10/2025 às 0:00 | Atualizado em 28/10/2025 às 7:31

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Acaba de ser comemorado, no último sábado 25, o Dia da Democracia, festejado no mesmo dia do assassinato de Vladimir Herzog (1937-1975) há 50 anos, pelo Exército Brasileiro (DOI-CODI São Paulo). Que tenhamos de "comemorar" a Democracia no dia do assassinato de um democrata é algo que, talvez, exija um exame sobre a relação entre a preservação das instituições democráticas e o sacrifício humano que elas exigem. E isso desde o início!

Democracia

Não custa repetir que quando Péricles, o estadista ateniense do século V° a.C. pronunciou sua célebre Oração Fúnebre, diante dos soldados atenienses mortos na Batalha do Peloponeso, ele disse algo assim: "Esses homens que aqui deixaram suas vidas, o fizeram para que uma ideia não sucumbisse: a ideia da Polis. A Polis não é a Ágora - um lugar para aonde se vai-, mas algo que se leva dentro de si: uma determinada disposição do espírito para regular os conflitos humanos através da palavra argumentada".

A Democracia - já disse aqui mesmo nessa coluna- não é mais um sistema político, MAS O SISTEMA QUE PERMITE A EXISTÊNCIA DA POLÍTICA, quer dizer, a POLÌTICA como um lugar de visibilidade, de uso da palavra e de ação concertada entre os homens: APARECER diante dos Outros, FALAR usando argumentos razoáveis e racionais e AGIR são os fundamentos de um poder SOBERANO. Por que "soberano"?

Cidade

A Democracia é um risco, e um risco de natureza "trágica". Aristóteles definia a tragédia como "a passagem de um estado bom para um estado mau de um homem que, por ter praticado uma boa ação, cai numa situação de desgraça" (Poética). Ao retirar as decisões sobre a vida da Cidade das mãos dos deuses, do destino (Moira) ou da providência, os homens assumiram um risco: o de serem responsáveis -para o bem ou para o mal- pelas instituições que regulam suas vidas: pode dar tudo errado, mas é no uso daquela "palavra argumentada" que poderemos, em concerto, redirecionar os destinos da Cidade.

A Democracia, diferentemente da República, responde à questão "Quem governa?" e "Como governa?". O "Quem governa?" remete à constituição de uma entidade política chamada POVO, que é diferente da multidão reunida na praça. Povo, modernamente falando, é - especialmente para os franceses revolucionários- uma entidade abstrata formada por cidadãos, por sua vez formados por uma escola pública e dispostos a comparecer a um lugar chamado "espaço público", que não é um logradouro específico (praça ou rua). Recusar-se a comparecer é o que Aristóteles chamou de "Idiotia"!!

Mas, a Democracia grega -uma oligarquia, na verdade- era exercida "diretamente": assim como ninguém pode sentir ou pensar no meu lugar, também não pode falar por mim! Para os gregos era vergonhosa a ideia da "representação" e, pelo menos um dia na vida, um cidadão ateniense tinha a obrigação de exercer uma função pública. Mas é preciso lembrar que a Democracia ateniense era coisa exclusiva de homens, atenienses, nascidos de pais atenienses e livres...

Democracia moderna

A Democracia moderna, numa sociedade bem mais complexa, numerosa e dividida, promoveu uma espécie de alienação, em que entregamos a um "representante" o poder de decidir por nós. O problema é saber se os interesses sociais são "representáveis", sem que o representante não confunda, misture, invada "nossos" interesses com os interesses pessoais ou de grupo. Transformados em "eleitores" nós deixamos de exercer a Cidadania, que não é simples escolha de representantes: é AÇÃO concertada.

Além do mais, a Democracia é mais do que uma relação com um ESPAÇO (público): ela é também uma relação com o TEMPO. A Democracia não é feita apenas pelos contemporâneos vivos, visíveis e audíveis num Mundo Comum: nossos mortos, os do Peloponeso e os dos DOI CODI, estão presentes nesse espaço, observando-nos do passado e atentos para o fato de se nós, agora, somos ou não dignos do sacrifício que eles praticaram para que "uma ideia não sucumbisse". E nós, agindo no presente, tornamo-nos responsáveis por uma "ética prospectiva" (Hans Jonas): garantir que os que ainda chegarão ao Mundo recebam um lugar que guarde algo de humano, de solidário, de empático, de compartilhado.

HERZOG, ao se apresentar espontaneamente à seda do DOI-CODI de São Paulo, naquela sexta-feira de Outubro de 1975, acreditava que, pela "presença" e pela "palavra", seria possível convencer seus torturadores e assassinos do valor e da importância do seu trabalho jornalístico e democrático. O problema é que torturadores e assassinos de Estado não acreditam, não compreendem e nem trabalham com noções como "palavra argumentada" ou "visibilidade pública": eles as substituem pela violência aniquiladora do Outro e pelo seu posterior "desaparecimento" (fim da visibilidade) clandestino.

HERZOG pagou, com sua própria vida, pela defesa de uma ideia, e TODOS NÓS lhe somos devedores!

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE

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