A velha toupeira
É comum afirmar que as pessoas néscias ou pouco inteligentes são umas "toupeiras. Equívoco lamentável.............................................

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A toupeira é um mamífero inteligente. Suas patas são adaptadas para escavar e construir complexos sistemas de grutas e túneis onde o animal sobrevive e se alimenta.
Na obra "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", Marx converte a toupeira em metáfora. A velha toupeira" é o povo - aquele que, algumas vezes, põe a cabeça de fora e se revolta. Aconteceu com a "PEC da Blindagem" quando o brasileiro se insurgiu contra o "alvará da impunidade". Na esteira da pressão das ruas, o Senado agiu bonito convertendo a PEC em peça de museu.
A "velha toupeira" poderia inspirar uma poesia se tivéssemos o talento de um Afonso Romano de Sant'Anna quando animou o voto da ministra Cármen Lúcia. Não falaríamos de fingimento e ajuntamento. Discorreríamos sobre golpes num "nouveau style": golpes brancos, silenciosos, erráticos, ocultos, clandestinos, invisíveis, camuflados, misteriosos, alegóricos, internos...Todas essas modalidades são postas em prática pelos governantes, independentemente de serem democratas ou autocratas, de direita ou de esquerda.... O "golpe misterioso", com o protagonismo de Trump, tem seus encantos se deixarmos o tarifaço, de lado e a fascinação pela "química" nas relações. Afinal, tudo ainda é imprevisível ou errático nessa quadra. Abordaremos a questão da arrogância de Trump, o homem que estava em campanha aberta para receber o Nóbel da Paz sob o argumento fantasioso de haver encerrado « seis ou sete guerras ». Nem sempre como se quer.
Em março deste ano a jornalista Ruth Allyn Marcus, que trabalhou no "Washington Post" por mais de 40 anos, na condição de especialista em política, Corte Suprema e Casa Branca pediu exoneração. A decisão aconteceu após o CEO Will Lewis recusar a publicação de um artigo que ela havia escrito criticando Jeff Bezos - fundador da Amazon e proprietário do The Washington Post. Segundo Marcus, "se autocracia é erosão do sistema de freios e contrapesos" (Estado de SP 29.09.25), como é o caso do Legislativo e do Judiciário nos EUA, o governo de Trump caminha para a autocracia. No que se refere à Suprema Corte, por exemplo, os ministros têm "uma visão muito inflada" do poder presidencial, razão pela qual a liberdade concedida à Corte Maior norte-americana é bem mais espaçosa do que nos governos precedentes.
O aclive autocrático de Trump é revelado no desejo de humilhar, de forma consciente, pessoas, instituições, governos. Em outra forma de dizer, Trump descobriu um modo de retaliar e revelar poder por meio do ridículo e menoscabo do outro.
No que se refere às instituições, citamos o caso do ex-diretor do FBI James Comey. Foi acusado, sem provas, de falso testemunho e obstrução na investigação do Russagate (interferência da Rússia nas eleições de Trump no primeiro mandato). Também a procuradora-geral dos EUA - Pam Bondi - foi pressionada a acelerar o processo contra Comey e contra o senador democrata Adam Schiff, acusado de fraude hipotecária. Nem sequer a CIA foi poupada. O New York Times comenta as pressões de Trump contra o ex-diretor - John Brenannan.
No aspecto imigração, lembramos o envio de tropas da Guarda Nacional para patrulhar cidades onde a população vem protestando contra o Serviço de Imigração e Controle de Alfândegas (ICE), um departamento que vem crescendo, sobremaneira, no governo trumpista. A ação contra as cidades veio lançar mais fogueira após a ameaça de prisão do presidente da Câmara de Chicago e do governador do estado de Illinois, a maioria deles majoritariamente democratas. Em junho, Trump havia enviado 5.000 integrantes da Guarda Nacional e fuzileiros navais a Los Angeles com igual objetivo. Num desses surtos de autoridade, ocorridos no dia 05 de outubro, a juíza Karin Immergut, em despacho, afirmou que "os EUA é uma nação de direito constitucional, não de lei marcial".
A análise pouco verticalizada das ideias de Marcus faz recordar a expressão "sociedade decente" cunhada pelo filósofo judeu Avishai Margalite ("La sociedad decente") com o significado de sociedade justa e civilizada, incapaz de degradar pessoas e instituições" O catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, Eduardo Paz Ferreira, escreveu uma obra com título semelhante, embora focando aspectos econômicos.
A intransigência de Trump foi lançada também. contra as Forças Armadas. O governante convocou, recentemente, centenas de generais norte-americanos para um cerimonial de lealdade. Os militares não fariam um juramento à Constituição, mas ao projeto político-ideológico trumpiano (Folha SP 3.10.25). As palavras pronunciadas durante a abertura do conclave dizem muito "Nunca entrei numa sala tão silenciosa como essa...se vocês não gostarem do que eu vou falar, podem sair, mas claro, lá se vão suas patentes, lá se vão seus futuros". Pouco tempo antes (Folha de SP de 02.10.25) o presidente norte-americano havia assinado um decreto regulamentando a situação dos generais gordos. Cada Departamento militar deveria adotar métodos cientificamente validados para mensuração da altura e circunferência da cintura dos militares. Aquele que não correspondesse aos padrões corporais seria colocado em "programas de recuperação" ou demitidos. Também foi regulamentado o uso de barba. Apenas bigodes seriam foram permitidos, desde que estivessem bem aparados e não ultrapassem os cantos da boca. Já as costeletas poderiam ser admitidas desde que estivessem acima da abertura da orelha.
Outro caso curioso foi a demissão do diretor da Biblioteca do Museu Eisenhower - Todd. Arigton. Trump teve a infeliz ideia de solicitar ao Museu uma espada que havia sido presenteada, em 1947, a Eisenhower pela rainha Guilhermina, da Holanda. O instrumento seria brindado ao rei Charles III, durante a visita de Trump à realeza britânica. A resposta do diretor do Museu provocou uma horrível reação do presidente: "a espada fazia parte do acervo do governo e deveria ser historicamente preservada". Trump acabou aceitando a produção de uma réplica, todavia, o diretor, com 30 anos de serviços ao Museu, foi imediatamente exonerado.
A estratégia de aviltamento ficaria incompleta sem a inclusão dos chefes de Estado. Sucedeu com. Cyril Ramalhosa, presidente da África do Sul que presenteou Trump, à chegada, com um livro de 14 quilos sobre os campos de golfe do seu país. Indiferente, ao mimo, o presidente determinou que apagassem as luzes para a exibição de clipes do opositor Julius Malema, líder do partido de extrema esquerda e combatente da Liberdade Econômica, orquestrando cânticos da era do apartheid e pedindo a morte dos africâneres. Sucedeu igualmente, com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, instado a deixar a Casa Branca juntamente com a sua comitiva.
Ainda há muito papel a ser gasto sobre o tema. Sem precipitação, afirmaríamos que Trump talvez esteja empenhado em fazer dos EUA uma "sociedade verdadeiramente indecente" - uma sociedade em que é preciso trucidar o adversário para o alcance da pacificação ou capitulação. Tudo parece revelar que cada sociedade detém a sua forma peculiar de imoralidade ou indecoro. A corrupção é uma delas. Só é preciso imitar a toupeira e cavar um buraco.
Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas.