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A versatilidade do crime organizado

Numa coisa todos concordam: no vazio deixado pelo Estado, rapidamente florescem as organização criminosas e o seu estado paralelo.

Por RENATO SILVA Publicado em 08/10/2025 às 0:00 | Atualizado em 08/10/2025 às 10:25

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Em janeiro de 1920 entrou em vigor, nos Estados Unidos, a 18º Emenda que declarou a produção, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas ilegais. Sob as bênçãos do "Partido da Proibição" e da "Liga Anti-Saloon", teve início o período da Lei Seca. Pretendia-se combater o consumo de álcool e outros malefícios decorrentes. O texto da lei trazia tantas exceções que envergonhou os próprios incentivadores. Como a produção do álcool para fins medicinais era permitida, no dia em que a lei entrou em vigor, em Chicago foi roubada uma enorme carga de "uísque medicinal". Instalados em Nova York, estimava-se a existência de 9.000 bares "clandestinos" em pleno funcionamento e que precisavam ser abastecidos. Entrou em cena o crime organizado que passou a controlar desde a fabricação até a distribuição de bebidas alcoólicas, incluindo-se, no pacote, a feroz disputa pelos pontos de venda mais valiosos. Qualquer semelhança com as organizações criminosas que atualmente, no Brasil, passaram a comprar usinas de álcool; importar metanol para adulterar a gasolina e ocultar os recursos ilícitos em fintechs, não é mera coincidência e sim a incrível capacidade do crime organizado em se atualizar sempre.

Alguns defendem que a Lei Seca foi o nascedouro do crime organizado nos Estados Unidos. As antigas gangues foram sucedidas por grupos onde as atividades eram bem estruturadas. Contadores, mestres cervejeiros, capitães de barco, bons advogados todos tinham lugar reservado. Se a ameaça ou o suborno aos agentes públicos falhasse, entrariam em cena os "torpedos" - elementos armados - que facilmente "convenciam" os opositores. Todo o império começou a ruir quando as organizações criminosas - no afã de crescerem, como qualquer empresa que se preza - iniciaram uma verdadeira matança entre os próprios chefes. Detalhe, Al Capone, suspeito de vários homicídios, nunca chegou a ser formalmente acusado e somente foi levado à prisão por crime de sonegação de imposto de renda. As lideranças política viram que a Lei Seca fora um fracasso e trataram de legalizar a fabricação e a venda de bebidas alcoólicas. Isso veio a ocorrer em 1933, no dia conhecido como Dia da Revogação. Quanto ao crime organizado, este não perdeu tempo e agora a sua atuação seria direcionada a exploração do jogo de azar, redes de prostituição, tráfico de drogas e a extorsão trabalhista.

No Brasil, há quem sustente que o crime organizado surgiu com a instituição do jogo do bicho, em 1892. Vendo-se em apuros para manter o jardim zoológico do Rio de Janeiro, o barão João Batista Viana Drummond colocou em prática a idéia do mexicano Manuel Zevada e mandou imprimir 25 figuras de animais com os respectivos números de 1 a 25. Quem comprasse um ingresso ganhava uma figura e, ao final do dia, havia o sorteio e quem estivesse com a figura do animal sorteado recebia o prêmio de 20 vezes o valor do ingresso. Foi um tremendo sucesso e o próprio Estado logo se apropriou do sistema de sorteios. Mas, em 1941, o jogo foi proibido. Logo, logo apareceram os grupos de contraventores que passaram a explorar as apostas e embolsar grandes fortunas com repercussão nas eleições partidárias e no glamour das escolas de samba. Suas influências podem ser medidas no fato de que em 1993 quatorze deles foram presos de uma só vez. Detalhe, quase todos assistiram juntos, na cadeia, aos desfiles das escolas de samba. Como tudo no Brasil recebe um apelido eis que surge, nos idos de 1970, o Comando Vermelho especializado em assaltos a banco - quando o dinheiro ainda era predominantemente físico - e que não hesitou em instalar uma base da organização no Conjunto Residencial dos Bancários, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, onde moravam funcionários e executivos de bancos e com os quais os integrantes da facção conviviam como gentis vizinhos e, assim, obtinham importantes informações sobre o movimento das agências bancárias. Era a "inteligência" trabalhando para o sucesso dos roubos.

Como o crime organizado vive em constante transformação, sempre procurando se adaptar aos mercados e oportunidades de lucros, as fronteiras nacionais desapareceram e os negócios ilícitos foram globalizados. 97% do fetanil - opioide sintético cinqüenta vezes mais potente do que a heroína e a droga que mais causa morte por overdose nos Estados Unidos - entra naquele país pela fronteira com o México e é produzido com alguns insumos importados da China. No Brasil, a economia paralela do crime organizado, se assenta em quatro pilares: comércio de combustíveis adulterados; comercialização ilegal de bebidas; extração ilegal de ouro; tráfico de cocaína e comércio ilícito de tabaco e cigarros.

Numa coisa todos concordam: no vazio deixado pelo Estado, rapidamente florescem as organização criminosas e o seu estado paralelo. No estágio atual, somente um amplo e consistente acordo entre todos que defendem o Estado de direito poderá criar alguma barreira ao crime organizado. No ponto, a aprovação da PEC da Blindagem, por uma parcela do parlamento nacional, foi um excelente contributo ao enfraquecimento das relações institucionais pautadas pela legalidade.

Renato da Silva Filho, membro do Ministério Público de Pernambuco

 

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