Artigo | Notícia

Uma a-Ventura sem faz de conta

Parodiando o linguista e filósofo Ludwig Wittgenstein, ouso afirmar que os limites da minha gramática são os limites do meu vasto mundo.

Por DAYSE DE VASCONCELOS MAYER Publicado em 05/10/2025 às 0:00 | Atualizado em 06/10/2025 às 10:36

Clique aqui e escute a matéria

Nesse caso, posso dizer que a palavra "Claro" é um substantivo, um advérbio e um verbo. Sei que é um despautério falar na conjugação do verbo "clarar" com o sentido de atrapalhar, embaraçar e perturbar o consumidor. Esse é o caso da empresa de telecomunicações "Minha Claro". Aí entra também em ação um dispositivo "não constitucional": o direito de rebeldia diante do possessivo "minha" sem aquiescência expressa do usuário - o rebanho tolo e insuficientemente domesticado, segundo Chomsky.

A ideia da "Claro" desabrochou quando li a excelente crônica do senador Fernando Dueire informando a tramitação do Projeto de Lei nº 3801/2025 que extinguirá a fiação a céu aberto no Brasil. O projeto de lei objetiva "promover a segurança urbana, a valorização do espaço público e a preservação do patrimônio paisagístico e histórico das cidades brasileiras" por meio de estruturas subterrâneas. Mas ouso confessar que sou uma pessoa cética ou pessimista. A experiência de vida pode converter o homem num sábio, quando está nas adjacências da idade provecta, ou num ser pirrônico. Estou no segundo lance. Por essa razão, vou imaginando as crateras abertas nas calçadas, o estrépito das brocas na rua, a falta de pessoal especializado, o preço da corrupção, as licitações duvidosas e até mesmo o valor repassado ao meu contracheque miserável de professor universitário, após anos de perseguição em meu País de sonhos e de pesadelos.

É verdade que acordo, algumas vezes, com uma forma abençoada de humor e passo a olhar o céu, como se estivesse em Londres acompanhando a esquadrilha acrobática para saudar a fiação subterrânea. Mas posso, é "Claro", já no dia seguinte, acordar prevendo um ciclo de humor instável. Veem-me à cabeça algumas ideias estapafúrdias: enquanto a Europa lança o seu protesto contra as guerras, o meu rugido fraco está sendo lançado, paroquialmente, contra uma empresa. E tudo acontece porque a "Claro" tem aversão à palavra "cabeamento", exceto se o custo for suportado pelo utente, daí a associação infeliz com a iniciativa do ilustre senador pernambucano. Por conta da longa espera pela fiação oculta, serei obrigada a engrossar a fila dos infelizes que guerreiam no Judiciário usando o brocardo: "quem advoga em causa própria tem um idiota como cliente". É melhor do que "casa de ferreiro, espeto de pau".

Curioso é que mesmo no caos eu ainda escuto a música de Hermeto Pascoal, o multi-instrumentista falecido e que tinha o dom da magia. Conta-se que o artista estava no consultório do dentista quando agarrou o sugador de saliva e com ele produziu o "Trem das Onze", horário que a Claro pode me visitar e deixar tudo pior do que encontrou. Aconteceu com o meu telefone fixo. O infeliz ficou soturno, taciturno e macambúzio por dois anos. As justificativas para o "mutismo" saíram dos lábios dos técnicos: doutora, seu telefone está envergonhado porque os seus quatro aparelhos estão obsoletos. Adquirido os novos aparelhos outras explicações vieram: madame, seus telefones precisam ser devolvidos porque estão com defeito de fabricação. A senhora ainda está com a fatura? Mais: doutora, os fios internos da sua casa estão ressequidos e necessitam de substituição. A Claro não patrocina esse serviço, a senhora tem que puxar o bronze para fazer o cabeamento. Essa história lembra o mito da "cama de Procusto" onde nenhum corpo cabia. Encontro-me nesse estado.

Exaurindo a imaginação sem falsificar a História, a "Claro" decretou a gratuidade do meu telefone. Depois disso, fez uma derradeira tentativa de ressuscitar o defunto conectando o telefone ao "moden". Eureka! O aparelho começou a cantar como uma "seriema". O problema é que ninguém conseguia escutar a fala do outro lado da linha.

Enfim, toda criatividade tem limites. Declarando a gratuidade do telefone fixo, a Claro admitiu, sem apelar para Descartes, que a linha existia. Era crucial que a empresa se livrasse do finado. Recepcionaria, nesse caso, a tese de que não há crime sem cadáver. Esqueceu de consultar o brilhante penalista Jório Valença. Ele dissertaria sobre o erro grosseiro e as teses mais recentes. Recordaria aos menos jovens o caso Dana Teffé, em 1964. O cadáver da milionária jamais foi encontrado e o advogado Leopoldo Heitor, amante da desaparecida, foi absolvido em três julgamentos pelo Tribunal do Júri.

Li, no "Diário de Notícias "que encontraram no Porto um casal de hipotéticos brasileiros que praticavam espionagem. Descobriu-se, afinal, que eram espiões russos com passaportes falsos. Brincando de "causo", num dia qualquer e sem fixação de turno e horário - porque o consumidor é sempre um ocioso - a "Claro", disfarçada de espião vendedor de peixe, aperta o botão da campainha e eu grito eufórica: Que vento a traz por estas bandas, "Claro"? E o espião responde: Venho trazer algo de jeito para o seu almoço. Tenho umas sardinhas gordas, uns carapaus e um robalo. Olhe bem os peixes. Estão lindos e brilhantes! Até parece que olham para si! Veja que a guelra está vermelha a provar que estão frescos. E o cheiro? Cheiram a mar. E garanto que não há trapaça alguma da minha parte. Se calhar, as sardinhas sabem melhor! Estão rechonchudas e ótimas para grelhar. Bem regadas com azeite e com salada de pimentos é de revirar os olhos. Mas compre o que lhe apetecer porque o preço é bom e não é preciso pechinchar. Afinal, não quero me meter em sarilhos. Desculpe lá, sei que a doutora não é forreta, mas, sabe como é..... E eu escutarei tudo isso como se estivesse imersa em água fria, convencendo-me de que o prazer do mergulho reside naquela sensação de gelo. Trêmula com a temperatura da água, balbucio envergonhada: eu só desejo mesmo que meu telefone funcione.

Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas.

 

Compartilhe

Tags