A saúde: entre o abuso das operadoras e a judicialização exacerbada
A saúde, no Brasil, deixou de ser tratada como um direito fundamental e passou a ser negociada como um bem de consumo................
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O que antes se via como missão social — garantir o atendimento digno a quem adoece — tornou-se um mercado altamente lucrativo, movido por acionistas e controlado por grupos econômicos que transformaram o sofrimento humano em produto. A lógica empresarial, travestida de sustentabilidade, substituiu o compromisso ético com a vida, enquanto o Estado se omite e o consumidor, fragilizado, busca na Justiça a reparação do que deveria ser natural: o acesso à saúde.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão criado para regular e fiscalizar o mercado de planos de saúde, deveria ser o ponto de equilíbrio nessa relação notoriamente desigual entre operadoras e consumidores. No entanto, o que se observa é uma atuação tímida e, por vezes, complacente, diante de práticas abusivas reiteradas. O jurista Miguel Reale Júnior, ao tratar da captura de órgãos reguladores, alertava para o perigo das instituições que se tornam reféns do poder econômico. É o que parece ocorrer também nesse setor, em que o interesse mercadológico frequentemente se sobrepõe à missão constitucional de proteção do consumidor.
É inaceitável que, mais de duas décadas após a edição da Lei nº 9.656/98, ainda se verifiquem negativas injustificadas de cobertura assistencial. O artigo 35-A da referida norma é claro ao impor às operadoras o dever de prestar os serviços contratados. Já o Código de Defesa do Consumidor proíbe expressamente a recusa arbitrária de atendimento. Mesmo assim, multiplicam-se decisões unilaterais que negam cirurgias, exames e terapias, muitas vezes urgentes, em afronta direta à boa-fé objetiva e à dignidade humana. E o mais grave: sem qualquer fundamento técnico-científico ou amparo legal que sustente tais recusas.
Diante dessa realidade, o Poder Judiciário tornou-se o último refúgio do cidadão. São milhares de ações distribuídas diariamente em busca de algo que deveria ser natural — o cumprimento do contrato. Juízes e desembargadores, em todas as instâncias, têm reafirmado a obrigação das operadoras de respeitar os direitos dos beneficiários. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, consolidou jurisprudência firme no sentido de que o rol da ANS é meramente exemplificativo e que as cláusulas limitativas devem ser interpretadas restritivamente. Ainda assim, as práticas abusivas persistem, como se as empresas apostassem na lentidão da Justiça e na desistência dos mais vulneráveis.
A perversidade desse sistema manifesta-se, sobretudo, no tratamento dispensado aos idosos. Muitos, após décadas de contribuição, veem-se desamparados no momento em que mais necessitam. Famílias inteiras se endividam para custear procedimentos que deveriam ser garantidos. Trata-se da mercantilização da esperança, do aprisionamento do sofrimento humano nas engrenagens de uma lógica financeira insensível.
Contudo, é igualmente necessário reconhecer que o fenômeno da judicialização da saúde, embora tenha origem legítima na defesa de direitos fundamentais, também produziu distorções. Em meio à omissão regulatória e à ganância empresarial, floresceu uma litigância, por vezes, oportunista, movida por interesses alheios à real proteção do paciente. Multiplicam-se demandas artificiais, ações temerárias e pedidos desproporcionais que sobrecarregam o sistema judicial e comprometem a celeridade na apreciação das causas realmente urgentes.
O desafio, portanto, é duplo: conter os abusos das operadoras e coibir o uso predatório da Justiça. Não se pode permitir que o direito à saúde — expressão da própria dignidade humana — seja reduzido a mero bem de consumo, nem que a via judicial se converta em instrumento de desequilíbrio econômico e insegurança jurídica.
É urgente repensar o papel dos órgãos de controle. Onde está a ANS quando hospitais próprios são desativados ou quando redes credenciadas são reduzidas de forma drástica? Onde estão o Ministério Público e o Parlamento quando se protelam projetos de lei capazes de restabelecer a proteção efetiva ao consumidor? O silêncio institucional é, neste contexto, a forma mais cruel de conivência.
A saúde não pode ser tratada como mercadoria. A vida não é um ativo financeiro. Um Estado que se diz democrático e civilizado deve garantir que a proteção à saúde prevaleça sobre a lógica do lucro. A indiferença, como advertiu Antonio Gramsci, é o peso morto da história — e, no Brasil, ela se manifesta no conformismo diante de um sistema que faz o cidadão pagar caro para sofrer em silêncio.
Enquanto não houver coragem institucional para enfrentar as causas estruturais desse desequilíbrio, continuaremos a assistir ao triste espetáculo de um povo que, para viver com dignidade, precisa recorrer à Justiça. E que, por ironia, acaba sendo vítima não apenas da omissão das operadoras, mas também da banalização de um direito que deveria ser sagrado.
Fernanda Menezes , advogada