Planos de Saúde lucram enquanto consumidor enfrenta reajuste abusivo
É inadiável devolver equilíbrio, humanidade e acesso universal a um sistema que hoje opera em benefício de poucos, às custas de muitos.

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O sistema de saúde suplementar no Brasil vive um paradoxo que salta aos olhos: enquanto milhões de brasileiros se veem acuados diante de reajustes anuais que inviabilizam a manutenção de seus contratos, as operadoras de planos de saúde celebram balanços recordes, com lucros que crescem em ritmo acelerado ano após ano. Essa contradição revela não apenas a fragilidade regulatória do setor, mas também uma distorção que ameaça o próprio acesso à saúde de milhões de cidadãos.
Segundo dados oficiais da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), somente no primeiro semestre de 2025, os planos de saúde registraram lucro líquido de R$ 12,9 bilhões - um aumento impressionante de 131,94% em comparação ao mesmo período de 2024. As projeções apontam que o ano poderá fechar com ganhos de até R$ 28,4 bilhões, o que representa um salto de 155% em relação ao exercício anterior. Esse cenário se constrói em meio a um ambiente econômico ainda instável, no qual o poder de compra da população não acompanha a escalada dos custos.
Mas de onde vem esse lucro tão expressivo? Grande parte decorre da forma como as operadoras aplicam reajustes desproporcionais, especialmente em dois segmentos: os planos coletivos por adesão e os chamados "falsos coletivos". Os contratos coletivos por adesão, em tese, foram criados para oferecer melhores condições a grupos vinculados a sindicatos, associações ou entidades de classe. Na prática, porém, tornaram-se terreno fértil para aumentos que escapam a qualquer lógica de razoabilidade. Um caso emblemático, documentado por escritórios de advocacia, é o de uma aposentada de 82 anos cuja mensalidade saltou para absurdos R$ 29.032,97 em um plano com apenas duas vidas.
No período, a variação acumulada atingiu 558,13%, quando os índices autorizados pela ANS para os planos individuais não ultrapassam 87,77%. Em 2024, esse contrato sofreu um reajuste de 45%, que, aplicado retroativamente, chegou a representar uma alta anual de 90%. Não se trata de reequilíbrio atuarial, mas de uma verdadeira expulsão silenciosa dos idosos do sistema. Conforme dados da própria ANS, a média de reajustes praticados no mercado para planos coletivos não supera 11% ao ano, o que torna ainda mais evidente o caráter abusivo de aumentos tão exorbitantes. Se os planos por adesão já trazem dor de cabeça, ainda mais grave é a situação dos chamados "falsos coletivos". Como as operadoras praticamente extinguiram a venda de planos individuais e familiares há quase duas décadas, consumidores são forçados a contratar planos empresariais utilizando CNPJs de fachada, muitas vezes limitados a uma única família. Essa prática cria um vácuo regulatório: como não são considerados individuais, esses planos não ficam vinculados ao teto de reajuste fixado pela ANS. Com isso, operadoras aplicam aumentos que chegam a duplicar ou triplicar as mensalidades.
Há relatos de famílias que, com três pessoas, pagam R$ 18.256,46, quando, aplicados os índices corretos da ANS, o valor deveria ser pouco menos de R$ 10 mil. Uma diferença que representa quase cinco vezes o legalmente devido. A contradição é brutal: ao mesmo tempo em que as operadoras alegam necessidade de reajustes para manter equilíbrio financeiro, acumulam lucros bilionários ano após ano. Paralelamente, os consumidores continuam a enfrentar negativas de cobertura, restrições indevidas e, não raramente, batalhas judiciais para garantir um direito básico. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU) já reconheceu que a ANS falha no acompanhamento e na correção dos reajustes abusivos. Em muitos casos, os aumentos são aplicados sem que haja memória de cálculo detalhada ou comprovação atuarial, em afronta direta à legislação vigente.
Do ponto de vista legal, o consumidor não está desprotegido. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui jurisprudência consolidada no sentido de que planos coletivos com número reduzido de beneficiários devem ser equiparados a planos familiares, com aplicação dos índices fixados pela ANS. Além disso, a Resolução Normativa nº 509/2022 estabelece que, nos planos coletivos por adesão, a operadora tem o ônus de demonstrar, de forma clara e documentada, a necessidade do reajuste. Isso inclui a apresentação de critérios técnicos, memória de cálculo, metodologia utilizada e período de observação. No entanto, o que se vê na prática é o descumprimento sistemático dessa obrigação. Outro aspecto alarmante é o comportamento de grandes operadoras diante de decisões judiciais. O ministro Herman Benjamin, do STJ, cunhou a expressão "litigância predatória reversa" para descrever a prática de empresas que, mesmo derrotadas em juízo, protelam o cumprimento das sentenças, multiplicando recursos e desgastando consumidores vulneráveis. Esse fenômeno, no setor de saúde suplementar, agrava ainda mais a situação de famílias que já enfrentam custos insuportáveis. O resultado desse modelo é claro: milhões de pessoas, especialmente idosos e doentes crônicos, ficam à mercê de uma escolha cruel - pagar valores impagáveis ou perder acesso à cobertura privada. A promessa de que a saúde suplementar seria alternativa ao sistema público se desfaz diante da realidade de que, cada vez mais, apenas uma minoria consegue arcar com os custos. O contraste entre lucros recordes e a exclusão de consumidores revela um setor que, em vez de cumprir sua função social, atua como uma engrenagem voltada prioritariamente à rentabilidade. A situação atual exige mais do que ajustes pontuais.
É necessário repensar o modelo da saúde suplementar no Brasil, equilibrando a sustentabilidade financeira das operadoras com a proteção efetiva do consumidor. Transparência, regulação eficaz e controle rigoroso dos reajustes são medidas urgentes para restabelecer a confiança no setor. Sem essas mudanças, a saúde continuará sendo tratada como mercadoria de luxo, restrita a poucos, enquanto a maioria da população se vê obrigada a migrar para o já sobrecarregado sistema público. A luta por reajustes justos não é apenas uma questão jurídica: é um imperativo de justiça social, de dignidade e de respeito ao direito fundamental à saúde. Mais do que números ou balanços positivos, está em jogo a vida de milhões de brasileiros. A saúde não pode ser transformada em campo de especulação. O desafio é grande, mas inadiável: devolver equilíbrio, humanidade e acesso universal a um sistema que hoje opera em benefício de poucos, às custas da vulnerabilidade de muitos.
Marília Carvalheir,a advogada de saúde suplementar. @mariliacarvalheira.adv