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A litigância abusiva: nem generalizar, nem tapar o sol com a peneira

Pertence ao senso comum que o acesso à justiça é uma conquista do Estado Democrático de Direito, além de garantia fundamental do cidadão.

Por Gustavo Henrique de Brito Alves Freire Publicado em 01/10/2025 às 0:00 | Atualizado em 01/10/2025 às 9:23

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Da mesma maneira, todos são sabedores do acionamento crescente do Judiciário para a concretização de direitos constitucionalmente resguardados. O fenômeno da "judicialização" é traço distintivo das democracias modernas. Nenhuma jabuticaba.

Mas há que se compreender também que não existem direitos essenciais ilimitados e que a litigância judicial deve ser exercitada com discernimento. O abuso do direito de peticionar é tóxico ao interesse coletivo, diante do que cumpre sujeitar-se a limites, sendo disso ilustrativos o binômio freedom of speech versus discursos de ódio e o direito à propriedade, que não somente pode, como deve ser desempenhado até o ponto no qual não prejudique o direito à moradia de outros ou cause danos ambientais de vulto.

No campo da garantia do acesso à justiça, corporificada no direito de demandar em Juízo, não há como fugir do roteiro do constituinte de 1988. Há que não descolar dele ou largar sua mão. A litigância abusiva, mediante demandas padronizadas, com petições-formulário e indiferença à existência ou não de pretensão resistida, não raro atraindo indícios de captação de clientela com o abastecimento em bancos de dados públicos ou privados, é uma doença.

Como patologia, seus sintomas incluem a similitude até na narração dos fatos, frequentemente sendo utilizados documentos pessoais disponibilizados em bancos de acesso público. Sim, a legislação conta com mecanismos de autodefesa ao problema, a exemplo dos poderes de gestão processual, que, no

CPC (2015), remetem ao artigo 139 e seguintes, com os deveres do magistrado de fiscalizar e velar pela regularidade dos feitos, controlando a sequência dos atos procedimentais e a relação inter partes, além de prevenir qualquer situação contrária à dignidade da justiça, porém, é tempo de entrar no antibiótico.

A litigância abusiva circunscreve atitudes e comportamentos sobretudo insuscetíveis de relativização. São práticas antiéticas, que agravam o congestionamento do sistema judicial e fomentam a erosão da confiança da sociedade nele. Não é pouca coisa.

De olho nessa foto maior, a OAB Nacional aprovou, por unanimidade, a celebração de Termo de Cooperação Técnica com o Conselho Nacional de Justiça para o compartilhamento de dados e a adoção de medidas conjuntas para identificação e tratamento da prática da litigância abusiva. O que se quer é que a advocacia seja ouvida na formulação de políticas públicas nesse sentido. De forma nenhuma responsabilizar a advocacia de modo generalizado, mas igualmente não fechar os olhos a um algoz cuja astúcia é infinita.

Não dá para compactar todos os casos de possível litigância abusiva como sendo frutos da imaginação de uma magistratura malévola e perseguidora, nem dá para acondicionar todos os advogados que litigam em volume no mesmo balaio como abusadores do direito de petição. Nem uma coisa, menos ainda a outra.

Há que se ter a lucidez desapaixonada de saber distinguir entre litigância de massa legítima (que decorre de lesões homogêneas de direitos, como em demandas consumeristas ou previdenciárias) e litigância abusiva (assinalada pela multiplicação artificial de processos, ausência de lastro probatório mínimo, fracionamento desnecessário de pedidos ou ajuizamento com intuito fraudulento ou protelatório). Não são sinônimas. A propósito, são balizadores o Tema 1.198 do Superior Tribunal de Justiça e a Recomendação 159/2024 do CNJ.

Consubstancia uma espécie de princípio ativo ou de mínimo existencial para a saúde do sistema de justiça que se ouça diretamente a advocacia na construção dos critérios que permitam separar com objetividade o joio do trigo em assunto tão delicado. Como disse o relator da matéria no Conselho Federal da OAB: "O combate à litigância abusiva deve ser conduzido com base em evidências, dados e cooperação institucional, sem filtros automáticos ou presunções generalizantes, de modo a resguardar o acesso à ordem jurídica justa". Eis aí, concordo em gênero, número e grau, a cartografia a ser seguida.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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