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Jones Figueirêdo Alves: A banalidade do mal

Eichmann não era um monstro no sentido clássico, mas um burocrata medíocre, que executava ordens sem refletir sobre suas consequências humanas

Por JONES FIGUEIRÊDO ALVES Publicado em 28/09/2025 às 19:57

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A banalidade do mal é um conceito elaborado pela filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975). Ela cunhou a expressão ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais organizadores da logística do Holocausto nazista. Ao assistir aos depoimentos, ela percebeu que Eichmann não era um monstro sanguinário no sentido clássico, mas um burocrata medíocre, que executava ordens sem refletir sobre suas consequências humanas.

A ideia central de sua obra “Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal” (05/1963)é a de que o mal pode não se apresentar em atos grandiosos de crueldade, mas em gestos comuns de obediência cega ou na ausência de pensamento crítico. O mal não surge apenas da perversidade deliberada, mas da incapacidade ou recusa de pensar sobre o impacto ético de nossas ações.

Arendt enfatizou que Eichmann não parecia movido por ódio pessoal contra judeus, mas por obediência ao sistema. Isso é a “banalidade”: o mal sendo praticado sem consciência plena de sua gravidade, reduzido a um cumprimento rotineiro de tarefas.

Na atualidade do seu conceito, a banalidade do mal é frequentemente invocada para compreender sistemas autoritários que transformam indivíduos comuns em executores de atrocidades e práticas institucionais que desumanizam (violência carcerária, genocídios, políticas discriminatórias). A omissão, o conformismo ou a indiferença diante de injustiças contribuem para sua perpetuação.

A banalidade do mal alcança o seu extremo ao consagrar a impunidade. Quando o mal não é punido cria-se uma cultura onde a irresponsabilidade moral se institucionaliza. A impunidade se torna, então, a normalização definitiva do mal. Não apenas o mal acontece, mas nada é feito a respeito, e essa indiferença social é o que o leva ao extremo. Em outras palavras, a impunidade legitima o mal. E ao legitimá-lo, o transforma em estrutura.

Tem-se uma nova banalidade do malem seus mais multifacetados aspectos. Nos conflitos geopolíticos, onde as tensões dilaceram a paz, quando se aplicam protocolos sem questionar os impactos morais diretos.

O sofrimento humano é gerenciado como “dano colateral”. Nos conflitos de gênero, discute-se acerca da extensão das medidas protetivas da “Lei Maria da Penha”. Foi admitida, em 08.08.25, a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 537.713.

Ou seja, o alcance dos instrumentos legais de proteção aos direitos humanos das mulheres nas situações de ameaça ou violência baseada no gênero, especialmente quando praticadas fora dos contextos domésticos textualmente disciplinados pela Lei Maria da Penha (Tema1412 - STF).

A banalidade do mal não está restrita a regimes políticos. Ela pode ocorrer em empresas que causam danos ambientais em nome do lucro, em governos que negligenciam sistematicamente as populações vulneráveis e, afinal, em sistemas públicos que “funcionam normalmente” e produzem desigualdades e violência estrutural, como as filas em hospitais, a ausência de vagas em maternidades, os descasos da segurança pública à falta de repressão eficiente à elevada criminalidade nos centros urbanos.

Toleram-se os déficits sociais como algo comum ou inevitável, quando não apenas favorecem a banalização do mal, mas muitas vezes são o próprio terreno fértil onde o mal se normaliza, se repete e se torna invisível.

Os deficitários sociais são ausências ou precariedades estruturais em áreas essenciais como educação, saúde, moradia, segurança e todos os direitos civis. Eles formam vazios de dignidade humana. E nesses vazios, o mal se instala sem uma resistência efetiva.

Quando a violência é constante e deixa de causar indignação, gerando insensibilidades e passando a ser “parte do normal”, surge o mal institucionalizado em sua cruel banalidade. A sociedade passa a aceitar o inaceitável como mera estatística.

Hoje, o conceito dado por Hannah Arendt mais se consolida, como ferramenta analítica para pensar o mal nas sociedades modernas. Estivesse viva, diria que novos crimes ampliaram o alcance do mal enquanto a tecnologia não criou o mal, mas o tornou mais eficiente, impessoal, virtual.

Ela se preocuparia com os sistemas de reconhecimento facial usados simplesmente para repressão, com as IAs militares que tomam decisões letais e com as Redes sociais que ampliam os discursos de ódio (“hate speech”)enquanto os lucros crescem. De fato, hoje o mal se oculta em “dashboards” (“painéis de controle”), não mais em campos de concentração. Permanece com ela a pergunta: Como podem pessoas comuns cometerem crimes perversos ou inusitados?

Quando Hannah Arendt fez a cobertura do processo de Eichmann em Jerusalém para a revista “The New Yorker”, ela anotou reflexões gerais sobre a justiça e seus limites, ressaltando estar diante de um criminoso de tipo novo, um criminoso que ninguém tinha previsto. Então, “para um criminoso novo, uma justiça nova. É preciso julgar Eichmann com armas jurídicas novas” – afirmou. Os seus escritos continuam atuais no plano jurídico.

Na exata medida que a humanidade assiste novos crimes e criminosos novos, a exemplo dos feminicídios (com recordes históricos), de agressões sexuais e de práticas de radicalização política por aqueles que consagram posições extremistas, será preciso e urgente expungir a banalidade do mal. Com um direito novo, capacitado de fazer uma justiça nova, intolerante com os malefícios que lesam a humanidade representada na pessoa de cada vítima ou na sociedade como um todo.

*Jones Figueirêdo Alves é Desembargador Emérito do TJPE. Advogado e parecerista

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