Priscila Lapa e Sandro Prado: Por que o Brasil ainda não aprendeu a valorizar a democracia?
É preciso que sejamos diretos: não existe alternativa viável à democracia. Quem ainda sonha com atalhos autoritários ignora a história

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O 15 de setembro, Dia Internacional da Democracia, não deveria ter passado despercebido no Brasil. Trata-se de uma data criada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2007 para lembrar ao mundo que não existe desenvolvimento justo, liberdade efetiva ou paz duradoura sem democracia. Mas, convenhamos, caro leitor, no Brasil essa reflexão é urgente: vivemos uma democracia que, embora consolidada formalmente desde 1988, continua sendo contestada, golpeada, mal compreendida e usada para a defesa de interesses particulares.
É preciso que sejamos diretos: não existe alternativa viável à democracia. Quem ainda sonha com atalhos autoritários ou soluções rápidas pela via da força ignora a história. Regimes de exceção sempre entregaram desigualdade, perseguição, mortes e retrocessos que custam décadas para reparar. A democracia é lenta, conflituosa, muitas vezes frustrante. Mas é justamente essa sua imperfeição que garante liberdade, diversidade e possibilidade de correção dos erros. A cada crise institucional, e já não foram poucas nas últimas décadas, fica claro que a democracia brasileira precisa menos de salvadores da pátria e mais de cidadãos ativos e instituições sólidas.
O problema é que, no Brasil, o divórcio entre sociedade e representantes chegou a um ponto crítico. A Câmara dos Deputados, em várias votações recentes, trouxe à tona um debate incômodo: afinal, os parlamentares estão lá para defender os interesses do eleitor ou para garantir acordos que preservam sua própria sobrevivência política e seus atos de corrupção e apropriação de dinheiro público? A sensação generalizada é que Brasília opera em um universo paralelo, blindado das reais urgências da população. Essa percepção é corrosiva. Se a representação política não faz sentido para o cidadão comum, a democracia perde vitalidade e abre espaço para aventureiros que tentam se apropriar do discurso do povo para corroer as próprias instituições e usurpar o poder a partir de golpes antidemocráticos.
A realidade é que nosso sistema político tem vícios enraizados. Os partidos, que deveriam ser pontes entre sociedade e Estado, funcionam como clubes fechados, com decisões centralizadas e quase nenhuma transparência. O presidencialismo de coalizão, celebrado por uns como mecanismo de governabilidade, converteu-se em uma máquina de distribuição de cargos e verbas que dilui responsabilidades. E a desigualdade no acesso a recursos eleitorais e sua distribuição entre os candidatos dos partidos faz com que determinados grupos tenham voz e que outros candidatos não passem de “cauda” para eleger candidatos pré-escolhidos. O resultado é um Congresso que não expressa, de forma alguma, a população e a diversidade real do país.
Não estamos negando as conquistas. O Brasil tem uma Constituição que é referência, um Judiciário que já se mostrou capaz de proteger a ordem democrática em momentos críticos e uma sociedade civil que, apesar do extremo cansaço, resiste. Mas também é verdade que nossa democracia foi colocada em xeque nos últimos anos como não acontecia desde a redemocratização. Tentativas explícitas de golpe, desinformação em escala fordista, ataques coordenados às instituições e a relativização da violência política são sintomas de uma crise que não pode, em hipótese alguma, ser tratada como normalidade.
No nosso entendimento, o mais grave é que parte significativa da população passou a duvidar da própria democracia como valor universal. O ambiente digital, dominado por discursos de ódio e por fake news, transformou a política em uma guerra permanente em que o adversário é visto como inimigo. Sem diálogo, sem mínimo consenso e com a lógica de destruir o outro, o espaço democrático se asfixia. É aqui que precisamos ser provocativos: não é a democracia que fracassou, são os atores políticos, e nós, como sociedade, que falhamos em cultivá-la, defendê-la e renová-la.
Fortalecer a democracia exige coragem para mexer em estruturas que beneficiam poucos e excluem muitos. É urgente democratizar de fato os partidos, ampliar a representatividade de mulheres, negros e povos indígenas e criar mecanismos que aproximem os cidadãos das decisões políticas. É igualmente indispensável investir em educação política e combater sem tréguas a desinformação. Não basta apenas votar a cada dois anos: é preciso acompanhar, cobrar, exigir transparência e participar dos espaços públicos. Democracia é exercício cotidiano, não um evento esporádico.
A reflexão que nos cabe é dura, mas necessária: queremos viver em um país que trate a democracia como mera formalidade, sujeita a barganhas, chantagens, compras de voto ou apoio, ou estamos dispostos a defendê-la como um bem inegociável? A democracia brasileira não está condenada, mas está ameaçada. E a maior ameaça não vem de fora, mas de dentro: da indiferença, do ceticismo e da tolerância da população com práticas que corroem diuturnamente as suas bases.
Os atos de 21 de setembro foram a resposta a um chamado à ação. Porque, ao contrário do que alguns pregam, não há saída fora da democracia. Todas as alternativas conhecidas desembocam em autoritarismo, violência e atraso. Defender a democracia não é uma escolha ideológica: é a única forma de assegurar um futuro com liberdade, direitos e desenvolvimento para todos.
E talvez seja justamente aí que resida a ironia do Brasil em 2025: quanto mais a democracia se mostra frágil, mais nos damos conta de que não existe plano B. Ela é trabalhosa, barulhenta, cheia de defeitos, mas é a alternativa única. Quem aposta contra a democracia não aposta em outro regime; aposta, na verdade, no caos. E o caos, como já aprendemos e talvez tenhamos esquecido, não costuma dar entrevistas nem tampouco pedir votos.
Priscila Lapa, jornalista e doutora em Ciência Política; Sandro Prado, economista e professor da FCAP-UPE.