Gustavo Krause: Visita à trincheira tropical
Sobram eventos cujos desdobramentos criam atmosfera pesada. Intoxicado, procurei aliviar o peso do cotidiano e decidi visitar a obra de Ruy Castro

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O mundo vasto mundo do poeta Drummond ficou pequeno. O intenso fluxo de acontecimentos dá a sensação de que o perto e o longe, assim como o agora e o depois, tudo ocorre no reduzido espaço de tensões e ameaças.
Em poucas semanas, o Brasil testemunhou o julgamento inédito do ex-presidente da República Jair Bolsonaro e membros de suas equipes pelo STF; assistiu ao assassinato do jovem líder conservador americano Charles Kirk, crime hediondo que atenta contra convivência pacífica entre as pessoas, assegurada pelas democracias.
Sobram eventos cujos desdobramentos criam uma atmosfera pesada. Intoxicado, procurei aliviar o peso do cotidiano e, leitor fiel, decidi visitar a obra de Ruy Castro 'Trincheira Tropical – A Segunda Guerra Mundial no Rio' (Ed. Companhia da Letras Leitor, SP – 06/6/2025). Um deleite. Ao tempo em que oferece sólidos conhecimentos, o livro profundamente humano, resulta de uma reconstituição histórica (escrito por jornalista e não, ressalva Ruy, por um historiador) o que significa ter o cenário em primeiro plano, seguido de pessoas que entram e saem, desafiando a habilidade de narrar e tecer esses movimentos. Foram seis anos de muita transpiração para agregar e digerir uma montanha de informações.
No prólogo, o autor define a configuração da “Guerra dos mundos” ao revelar o ideário político que alicerçava as estruturas do poder: “Eram três mundos: o democrático, o comunista e o fascista. Como esferas no espaço, eles se aproximavam ou se repeliam”, modelo vigente no nosso país, assim explicado: “O Brasil ainda não sabia, mas, em 1935, a luta em suas fronteiras entre as três grandes esferas – o fascismo, representado pela Ação Integralista; a democracia, brevemente pela Aliança Nacional Libertadora e o comunismo, pelo Partido Comunista do Brasil – já era a guerra. Pelos oito anos seguintes, o Rio foi o epicentro desse combate. Em 1944, a luta se transferiu para uma gelada cordilheira italiana e envolveu milhares de bravos brasileiros. Mas o epicentro continuou aqui”.
Como “a guerra tomou conta de tudo”, nada escapou à aguda percepção do autor escrita em mais de seiscentas páginas, organizadas em 21 capítulos. A metáfora da trincheira, encravada no trópico, se oferecia aos imigrantes, exilados, refugiados, perseguidos políticos, como uma alternativa para viver longe do inferno europeu, acolhidos, por uma natureza bela, acolhedora e, possivelmente, como uma promessa de renovadas esperanças.
Esta primeira sensação, nela incluída um povo alegre e afetivo, era repassada pelo Rio de Janeiro, cidade cosmopolita e sedutora, capital da República, que revelava as contradições de um país atrasado pelo analfabetismo e por uma pobreza estrutural. Algumas personalidades mundialmente consagradas, como Orson Welles e Waldo Frank (este ciceroneado, por Vinicius de Moraes) conheceram e constataram a realidade do Brasil profundo.
No entanto, a sede do poder era o palco das decisões que geravam fatos, acontecimentos, ditavam rumos e afetavam a vida das pessoas. No Rio, acontecia a segunda guerra mundial, replicando o desenho político e absorvendo os efeitos do conflito não só na política bem como na economia, na cultura e, de forma intensa, em todos os setores da sociedade. Por aqui estiveram e nos deixaram um enorme legado figuras notáveis da inteligência global, vítimas da estupidez totalitária.
No mundo, as ditaduras destruíam as democracias. O ódio organizado foi o prenúncio das ações beligerantes. O nazifascismo confrontava com o comunismo soviético por conta dos impulsos imperialistas. A radicalização era liberticida; nas democracias europeias, as feridas da Primeira Guerra Mundial ainda sangravam; nos EUA, o objetivo estratégico da democracia americana era a prosperidade econômica.
No Brasil, o Presidente Vargas, cercado de militares e civis germanófilos, simpatizava com o nazifascismo, decorrência dos seus pendores autoritários. Dissimulado, manejava as ambiguidades para delas tirar partido. Quando percebeu os claros sinais de derrota do Eixo, apoiou os países aliados sob a liderança americana.
“O Brasil – assinala Ruy Castro – não precisou abrir suas portas para a guerra. Ela entrou sem bater e sem limpar os pés. O torpedeamento dos mercantes provocara mais de novecentas mortes”. De fato, o ataque aos navios da marinha mercante era motivo suficiente para a decisão do chefe da ditadura estadonovista. Não havia alternativa. Ainda assim, o sacrifício de jovens brasileiros nos campos de batalha assegurou ao arraigado pragmatismo de Getulio o financiamento dos EUA para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), projeto estratégico para o processo de industrialização do país.
Eis aí um grande paradoxo: o Presidente Vargas, chefe de uma ditadura, juntou-se aos aliados para lutar pelas democracias contra as tiranias. O Brasil pagou um preço alto. Nos quatro últimos capítulos do livro, o autor retrata, em páginas realistas e comoventes, a provação dos 25.334 pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) desde o alistamento, treinamento e viagem, ao sangue derramado, especialmente, nas batalhas de Montese e Monte Castelo, em momentos de bravura e heroísmo dos nossos combatentes em condições dramaticamente adversas.
De outra parte, os relatos da fracassada intentona comunista (1935), assim crismada por Assis Chateaubriand, e do fiasco do putsch integralista (1938) demonstram que a violência política esteriliza a concórdia, a tolerância, colocando em campos opostos personagens que viriam a ser, tempos depois, grandes democratas identificados pela consistente pesquisa histórica.
Ao concluir a leitura do primoroso livro, senti um puxão de orelha, uma advertência em relação ao que é ou que pode parecer uma fuga da assustadora realidade com suas misérias e grandezas. Não é o caminho. Não sei se existe e desconfio de que seja possível saber.
No entanto, a história, descrita com engenho e arte pelo jornalista, ensina: a nossa trincheira continua tropical, mestiça, diversa, assim nos brindou a natureza. Nela vicejam dificuldades, oportunidades e desafios. O maior desafio é construir a trincheira democrática. Depende de nós. Em se plantando, dá.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco