Demografia e tolerância
O Brasil precisa de novas lideranças políticas capazes de convencer a sociedade a se desligarem das amarras do lulismo e do bolsonarismo.
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Numa entrevista, quando perguntado o que aconselharia aos jovens, o jornalista e teatrólogo Nelson Rodrigues (que nem era tão velho) respondeu: "Envelheçam". Ele quis, provavelmente, dizer que o envelhecimento vem acompanhado de maturidade, de moderação e de comedimento. Os jovens devem ser rebeldes, inquietos, revolucionários, do contrário, não têm coração, ou seja, carecem de sensibilidade e da insatisfação diante dos desajustes do mundo. Com o envelhecimento, contudo, os que permanecem rebeldes e revolucionários, não teriam amadurecido, não teriam aprendido com a vida e adquirido moderação diante da complexidade da realidade social e econômica. Ou, como pensava Nelson Rodrigues, não amadureceram. Na expressão mais provocativa, Carlos Lacerda teria dito que "quem não foi comunista na juventude, não tem coração; quem continua comunista na velhice, não tem juízo" (frase atribuída também a Wiston Churchill). Tentando justificar a sua própria trajetória política - o jovem comunista que, na vida adulta, passou a liderar a direita - Carlos Lacerda defende a tese equivocada de que o juízo leva os velhos à direita.
A rebeldia e o inconformismo dos jovens são o impulso fundamental das mudanças sociais num planeta violento e desequilibrado e, no Brasil, desigual e injusto. Melhor mesmo que não sigam o conselho de Nelson Rodrigues, que não envelheçam. E quando a idade avançar, conservem a indignação com as injustiças e as mazelas sociais do planeta, somem, à maturidade que a vida concede, a crítica fundamentada e racional. Pulsão rebelde e reflexão racional disputam espaços no pensamento e no comportamento humano, alternando a predominância ao longo da vida. Com o envelhecimento, a razão tende a controlar e até moderar a rebeldia, mas não leva, necessariamente, ao conformismo ou aceitação cínica das injustiças e das intolerâncias.
Através dos anos, a síntese dialética de rebeldia e racionalidade deveria formar uma velhice lúcida e crítica, mistura de maturidade e conhecimento com rejeição das perversões sociais e políticas do planeta e do Brasil. Como não dá para impedir o envelhecimento do corpo - processo natural de danificação e divisão desordenada das células - no máximo conseguimos moderar o seu ritmo, em vez de esmagar a rebeldia e o inconformismo de jovem, os adultos sábios devem utilizar a razão e o conhecimento para administrar e orientar o impulso juvenil de modo a escapar da intolerância e implementar as mudanças que constroem o desenvolvimento futuro do Brasil.
O envelhecimento da população poderia levar também à formação de uma sociedade mais conservadora e menos tolerante, à redução da rebeldia coletiva acompanhando o declínio da população jovem? Parece razoável, mas não é o que está ocorrendo no Brasil (nem no mundo), como se houvesse uma relação inversa, a direita e a intolerância crescendo e a emergência de uma extrema direita fanática, ao mesmo tempo em que a população envelhece. Nos últimos 25 anos, a juventude brasileira diminuiu significativamente, enquanto a população idosa cresceu e superou mesmo o número de jovens. A população jovem do Brasil, rebelde e inquieta, que representava 14,1% do total dos brasileiros, no ano 2000, equivale hoje a apenas 9,8% (2025), tendo iniciado um movimento de redução em termos absolutos desde 2002. Enquanto isso, a população idosa, com 60 anos e mais, vem aumentando a participação no total dos brasileiros, partindo de 8,7%, no ano 2000, praticamente dobrando em 25 anos (chega a 16,6% do total, em 2025). Desde 2014 a população com mais de 60 anos é maior que a população de jovens.
O fortalecimento da tendência política de direita não pode ser atribuído a um fenômeno demográfico. Foram outros fatores políticos, econômicos e sociais, além de religiosos, que permitiram a Jair Bolsonaro destampar os subterrâneos de intolerância e ressentimentos acumulados e contidos na sociedade brasileira. Ao contrário do que se poderia esperar da mudança demográfica, que levaria à moderação política da sociedade brasileira, o Brasil está cada vez mais polarizado e intolerante, a democracia brasileira, sistema de tolerância, convivência e negociação de conflitos, ameaçada pela extrema direita fanática. Nos próximos 25 anos, o Brasil terá cada vez mais menos jovens e número crescente de idosos. Mas o Brasil não pode esperar e a mudança demográfica não tem o poder de transformar a política brasileira. Para reverter o quadro de polarização e intolerância na sociedade brasileira, o Brasil precisa de novas lideranças políticas capazes de convencer a sociedade a se desligarem das amarras do lulismo e do bolsonarismo.
Sérgio C. Buarque, economista