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Pela democracia defensiva

A democracia não é freguesa exigente. Contenta-se com pouco. Como a vida, a odisseia democrática é como uma sala de aula. Não se esqueçam suas lições.

Por Gustavo Henrique de Brito Alves Freire Publicado em 13/09/2025 às 0:00 | Atualizado em 13/09/2025 às 9:56

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Com parte da opinião pública a concordar e outra, não, a Primeira Turma do STF concluiu o julgamento da Ação Penal (AP) 2.668, entendendo, por maioria (vencido o Ministro Luiz Fux) que a competência para a examinar era da Corte e que os eventos do 8 de janeiro de 2023 configuraram tentativa de golpe de Estado.

Não se cometerá o erro de promover um juízo analítico do referido veredito. Isso não se comportaria aqui. A reflexão que se deseja propor repousa degraus acima, no próprio conceito de democracia defensiva, ela a grande vítima, felizmente sobrevivente, dos eventos dos quais se ocupou a ação penal em referência.

De fato, o julgamento da AP foi cansativo. Desnecessariamente. Não à toa, afirmam os críticos, aí jaz o maior dilema da TV Justiça: aproxima o Judiciário da população, mas serve de estímulo à vaidade dos pronunciamentos quilométricos.

Democracia vem do grego "demos", significando povo, somada a "kratos", ou seja, poder. Em interpretação livre, democracia é, portanto, a mesma coisa que poder do povo. Aflora quando o povo escolhe quem o irá governar e controla como esta governança se dará. Para os gregos, três eram os regimes políticos: a monarquia ("mono" "arquia" = poder de um só), a aristocracia ("aristos" = os melhores "arquia" = poder) e, voilá, a democracia. Em Atenas, o povo exercia o poder, diretamente, na praça pública, na medida em que inexistia assembleia representativa. O aspecto negativo do modelo em questão é que praticamente inexistiam eleições: as assembleias eram compostas por sorteios.

Chega-se então agora, sem atalhos, ao cerne da reflexão, que é a essencialidade da democracia defensiva (ou "defensive democracy" no direito comparado). Sobre tão distinta senhora, pondera Josef Christ, Ministro do Tribunal Constitucional alemão (Revista de Direito Público, volume 22, nº 113, jan/abr 2025) o seguinte: "Os inimigos da Constituição não podem, invocando as liberdades garantidas pela Constituição, ameaçar, prejudicar ou destruir a ordem constitucional ou a existência do Estado". Eis do que se cuida. A ordem democrática, posto que livre, deve estar a todo momento protegida tanto de contra-ataques do próprio Estado, como da sociedade.

O paradigma da experiência germânica leva a uma conclusão objetiva. Na Alemanha, a República de Weimar, com a Constituição de 1919, foi abruptamente exterminada pela ascensão do nazismo ao poder, com a doutrina perversa e desumana que assinalou a era Hitler. Mas os cidadãos haviam perdido a confiança no Estado Constitucional e Democrático de Direito, o que os carreou aos discursos gritados do Füher. Por isso Weimar sucumbiu. O resto da história é conhecido.

O eixo fundante da democracia defensiva consiste em que somente seus inimigos devem ser excluídos do confronto de opiniões. Além da dignidade humana, o cidadão tem o direito de escolher o Poder Público através de eleições igualitárias. A ruptura desse sistema é sempre perniciosa, o que concita a que todos

adquiram, desde a mais tenra infância, um grau de consciência que os levará, na fase adulta, a se tornarem cidadãos plenos.

A AP 2.668 resultou de denúncia da Procuradoria-Geral da República, antecedida por Inquérito da Polícia Federal, a partir de elementos que, ao menos no que se refere à materialidade, restaram incontroversos. Sim, pois nenhuma das defesas técnicas no julgamento em tela refutou que houve tentativa de golpe. Nenhum tribuno negou a materialidade. Questionaram-se tão somente as autorias.

Os fatos não são próprios dos Juizados de Pequenas Causas. Nem se pode querer que se acredite que tudo foram meras cogitações. Tentada, como enfim o foi, a ruptura institucional, só não consumada porque houve resistência, salvou-se a democracia defensiva do cadafalso, mas exatamente por isso a ela o garantismo penal máximo. É esperado das instituições cidadãs que o Judiciário julgue, o legislativo legisle e o Executivo governe. A democracia não é freguesa exigente. Contenta-se com pouco. Assim como a vida, a odisseia democrática é como uma sala de aula. Que não se esqueçam suas lições. Pode não haver tempo para a prova de segunda chamada.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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