A overdose do século e os três brasis
O terceiro brasil é o dos crimes menores e da justiça cega. Contrasta com a rapidez do STF e das diligências da Polícia Federal.........

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Tudo é política afirma James Marriott em artigo no "The Times". Essa compulsão diabólica pela política e pelos políticos vem causando uma exaustão ou estresse em qualquer país do mundo, máxime no Brasil. Fala-se até mesmo na descoberta de uma nova doença: "burnout político".
O que os cientistas também revelam é o clímax da "era da pós-verdade" ou era da verdade pervertida ou contaminada pelas redes sociais. É uma estação em que as instituições vão perdendo sentido e relevância, o ativismo progride contra o governo e contra os partidos políticos. Por sua vez, a mídia tradicional vai ficando cada vez mais enfraquecida.
Enfim, confirma-se a ideia de que "o dedo é bem mais rápido do que o cérebro" e que pode ser manipulado pelos influencies que são os criadores de conteúdo mediante utilização de plataformas. Compartilham modos de vida, moda, beleza, viagens, sexo, marcas de produtos, rotinas, ideias e até mesmo política malsã ou equivocada. Os mais espertos ganham rios de dinheiro e produzem material geralmente de natureza pouco confiável. São os manipuladores da era da pós-verdade.
Os EUA têm sido o grande país da pós-verdade e também do burnout político. Tanto é assim que em 2024, durante a eleição de Trump, os americanos decidiram restringir o consumo de notícias políticas efetivando a troca por charges ou cartuns. Uma delas está contida na obra de Amy Goodman e David Goodman (Corrupção Americana): "o Iraque tem armas nucleares de destruição em massa, grita o secretário de Defesa dos EUA, "Como sabe? " - indaga um observador cético. "Porque eu tenho os recibos".
Recentemente surgiu uma outra divulgada pela revista Piauí de 31.08: o serviço de inteligência dos EUA já foi melhor. Se quisessem mesmo punir o STF, em vez de cancelar o visto americano dos ministros deviam ter dado um jeito de impedir que entrassem em Lisboa. Isso sim deixaria o ministro Gilmar Mendes numa situação difícil.
Outro chiste curioso, de autor desconhecido, surgiu no Brasil. Um ministro da saúde passou por um sem-teto e o sem-teto solicitou uma esmola alegando fome. E o ministro responde: "Não ando com dinheiro". E o mendigo, apontando para uma pilha de biscoitos numa vitrine, afirma que "a loja recebe cartão ou pix". Então a autoridade, infla o peito como se fosse um pavão e diz: "biscoito? Não sabe que esses alimentos industrializados possuem alto teor de açúcar e gordura? O senhor precisa ter cuidado com a sua saúde! Logo, logo vai ficar obeso e cardíaco e terá que consumir seu salário na compra de insulina e medicamentos para a pressão".
Mas toda a anedota tem um fundo de verdade. A questão da habitação, é um exemplo. Na capital dos EUA cerca de 80 pessoas, em cada 10 mil habitantes, vivem ao relento, em tendas, dentro de carros velhos ou em abrigos de caridade (Diários de Notícias de Lisboa de 29/08). Ultimamente, Trump, desejoso de receber o prêmio Nobel da Paz, decidiu chamar a tropa e mandar correr os sem-abrigo de Washington. A cidade ficou "linda!"
A partir dessas considerações de humor, fica bem evidente que estamos a viver em três brasis diferentes: o do STF - intenso, célere, cristalino nas notícias, com estilo rebuscado, repleto de citações jurídicas e, nessa quadra, com mídia internacional sobre o julgamento de generais, ex-presidente da República e altos funcionários do Executivo. Por outras palavras, estamos no apogeu das discussões sobre os supostos autores do golpe de janeiro de 2023 na tentativa de encerrar o capítulo que revelou a resiliência da nossa democracia.
O segundo brasil tem caráter superlativo. Está voltado para o crime organizado (PCC e CV) e para o setor financeiro dos bilhões de reais. Aproveita-se do ponto cego existente na governança dos fundos de investimentos pela Comissão de Valores Mobiliários (CVB). É o brasil da Avenida Paulista onde estão concentrados grandes bancos e empresas. A operação "Carbono Oculto" expôs a face deletéria e venenosa do crime organizado em nosso País. A Polícia Federal revelou o que sucede nos portos, usinas, refinarias, distribuidoras de combustível, corretoras, administradora de fundos e fintech. Mas essas operações não apagam uma dúvida cruel: até que ponto a política não está camuflada na máquina estatal, em plena campanha para o ano próximo?
O terceiro brasil é o dos crimes menores e da justiça cega. Contrasta com a rapidez do STF e das diligências da PF. Um terço ou mais da população carcerária vem aguardando julgamento e não há pressa nas decisões. Afirma-se que há excesso de criminosos para poucos magistrados. Com o abuso de faculdades de Direito, o trabalho de conclusão de curso (TCC) bem que poderia ser substituído pela análise bem construída dos processos criminais engavetados. Seria uma forma de "abrir os olhos do julgador" tendo em conta que muitos presos são inocentes. Eles se misturam à população de assassinos, ladrões, estupradores... Todos sem assistência médica, com precárias condições sanitárias e sofrendo com a superlotação das celas. Descobre-se então que o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana só existe no papel da Constituição. E tudo piora quando se conclui que inexistem programas de reintegração social. concorrendo, nesse caso. para o aumento do alto índice de reincidência criminal.
Revendo o Brasil nº 2 - o do "capitalismo do crime" - a leitura de jornais e revistas revela que isso não sucede apenas no Brasil. A Rússia é um exemplo. Trinta e cinco militares de alta patente e destacados para o combate na Ucrânia, estão usando "tiros em duo" para obtenção de prêmios de bravura, férias, condecorações e dinheiro - muito dinheiro. Afinal, também é possível a existência de falcatruas na guerra, mesmo correndo o risco de um balaço num órgão vital. Um dos envolvidos na fraude chegou a receber 200 milhões de rublos ou 2,1 milhes de euros por um autoflagelo.
Para instigar a imaginação e a alegria do leitor num dia de domingo, decidimos completar o artigo com as altas tendências da alta costura masculina da Dolce & Cabana, Fendi, Prada, Gucci, Ermenegildo Zegna, e outros. Em Milão os desfiles revelaram a erradicação da masculinidade tóxica. A moda pretende disciplinar os homens por meio do confronto da virilidade apenas fálica imposta pela sociedade. Tenta mostrar que a fortaleza masculina só existe no espelho e que os varões, assim como as mulheres, também são reféns de suas fraquezas (que grande novidade!). A Itália revela ao mundo que o homem moderno pode usar salto alto ou plataforma, roupas em tons bem suaves (branco areia e caramelo), t-shirts com a barriga à mostra combinando com loungewear (pijamas e chinelos). Enfim, se tudo na vida é política, a desigualdade entre os sexos pode ostentar a sua rebeldia na alta-costura. Já é um avanço, mesmo tímido e um tanto grotesco.
Dayse de Vasconcelos Mayer , doutora em ciências jurídico-políticas