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O Tribunal do Santo Ofício

Começou esta semana, em Brasília, um julgamento com sentença já redigida. Sem qualquer suspense ou dúvida, sabemos todos como terminará

Por JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHOjp@jpc.com.br Publicado em 05/09/2025 às 0:00 | Atualizado em 05/09/2025 às 10:46

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Só um teatro. Revelando ao mundo a cara de um país fraturado, como o nosso, que aposta numa radicalização mais ampla. E insensata.

Levando, cada vez mais, a que nos afastemos do país fraterno de que falava Sérgio Buarque de Holanda em sua tese clássica sobre nossas raízes, Brasil, um país cordial. Em vez de falar sobre isso, por acaso me veio à mente um episódio marcante de nossa história. Que fala de Inquisidores e da Inquisição. E finda por repercutir, como se verá, no país que somos hoje. Espero que o amigo leitor aprecie.

Começo lembrando que os primeiros prenúncios de um maior conservadorismo na Igreja Católica se deram com o Tribunal Público Contra a Heresia, em Orleans, por volta de 1022. A partir daí o movimento dirigiu-se, depois da França, para a Espanha; quando, em 1478, o papa de Sarvona Sisto IV emitiu a bula Exigit sincerae devotionis affectus, permitindo a instalação de um Tribunal da Inquisição em Castela. O que levou a enorme imigração de judeus e hereges, que lá viviam, para terras lusitanas.

Os mesmos que passaram a ser perseguidos, também ali, a partir do Édito de Expulsão de 1496. Ocorre que a Inquisição instalou-se, em Portugal, só bem depois; talvez por não demonstrar, o país, tanto poder junto à Santa Fé. Valendo lembrar que a igreja teve apenas um papa português, e bem antes, Pedro Julião Rebolo (1215 1277), nomeado João XXI e mais conhecido como Pedro Hispano.

Em 1515 o rei D. Manuel I, O Venturoso, requereu um tribunal similar ao papa florentino Leão X, para cumprir compromisso que contraiu no casamento com Maria de Aragão. Sem sucesso. Depois da morte do monarca, em 1521, o trono português passou a ser ocupado por D. João III, e aquela solicitação foi reiterada ao papa do Lácio Paulo III. Para dar força ao pedido, que fez em 1524, havia permitido que judeus pudessem abandonar Portugal em paz. Novamente sem sucesso, no pleito. Mas a preparação avançava.

Em 1531, ocorreu grande sismo em Lisboa, prenúncio daquele gigantesco de 1775. Tido, pelo povo, como culpa do criptojudaísmo. Tudo conspirando para que o papa florentino Clemente VII finalmente autorizasse a fundação do Santo Ofício, em Portugal, com a bula Cum ad nihil magis (publicada em 22/10/1536). Logo nomeado, como Inquisidor-Mor, o frei Diogo da Silva, bispo ceuta e não por acaso confessor do Rei D. João III.

O primeiro Livro de Denúncias, iniciado em Évora, continuou em Lisboa. A partir de janeiro de 1537, para onde se transferiu a Inquisição, instalada no local onde hoje está o Teatro D. Maria II. Até que, a partir de 1541, foram sendo criados novos tribunais em Coimbra, Évora, Lamego, Porto. O domínio espanhol em Portugal, a partir de 1580 (findaria só em 1640), não alterou a maneira de agir da Inquisição, que tinha grande atuação no país vizinho.

O Regimento de 1640, em um Portugal já liberto, determinava que cada tribunal do Santo Ofício deveria ter uma Bíblia; um livro de Direito Canônico; o manual dos inquisidores, Directorium inquisitorum, do inquisidor catalão Nicolau Aymerich; e De catholicis istitutionibus, do bispo espanhol Diego de Simancas. O Inquisidor era considerado um Sanctificatus Master. Centenas de servidores lhe prestavam serviços, mantidos seus nomes em segredo. Oficiais da Inquisição, quando não faziam parte do clero, eram conhecidos como Familiares do Santo Ofício.

Membros da nobreza exerciam enorme poder, até mesmo para efetuar prisões. Informantes eram bem recompensados, inclusive com isenção de impostos. As denúncias acabavam todas aceitas, inclusive cartas anônimas (desde que "a serviço de Deus e ao bem da fé"), simples boatos ou declarações feitas em severos interrogatórios (só não se podendo ouvir o acusado, nas sessões públicas, "mostrando sinais de torturas").

Diferentemente da espanhola, que perseguia protestantes, essa Inquisição portuguesa pouco se interessou pelos crimes por lá mais comuns de bruxaria e sodomia. Alvos em Portugal eram, sobretudo, judeus, depois de suas conversões religiosas tidos como cristãos-novos.

Presos tinham seus bens confiscados e transferidos para depósito, num processo considerado Sequestro, com base no princípio do confisco automático. E eram vendidos, em hasta pública. Garantindo, para além dos emolumentos pelos serviços em nome da fé, recursos gastos no custeio das despesas do processo (salários, visitas, viagens), afora a parte da Coroa usada para manter equipamentos das frotas e despesas de guerra.

Certo que posterior declaração de inocência, dos tais acusados, quase sempre correspondia a que não recuperassem aqueles bens, posto que já transferidos a terceiros. Francisco Carvalho Rosado (A Inquisição em Cascais) até diz serem "processos motivados mais por motivos econômicos do que propriamente por razões religiosas".

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