Ucrânia: entre o Czar e o Yankee
A ofensiva da Rússia favorece Trump na sua estratégia para dobrar o governo de , forçando um acordo de paz nos termos exigidos pelo presidente russo

Clique aqui e escute a matéria
Desde o início do seu governo, o presidente Donald Trump tem desenhada a receita para acabar com a guerra da Ucrânia: entregar à Rússia parte do território ucraniano já ocupado pelas tropas russas, cerca de 20% do leste do país invadido. Simples assim. Começou suspendendo a ajuda militar à Ucrânia, para poupar gastos, e ainda cobrou pagamento pelo aporte do governo anterior (Joe Biden) em armas e equipamentos para a defesa do território ucraniano. Embora não esconda a sua simpatia pelo presidente Vladimir Putin, tolerando o expansionismo da Rússia, o que Trump pretende, mesmo, na sua diplomacia chantagista, é o direito de exploração vantajosa das terras raras do território ucraniano que sobrar depois que a Ucrânia for forçada a ceder um pedaço ao invasor, como pretende o arrogante presidente estadunidense.
Duas semanas depois dos afagos de Donald Trump ao presidente Vladimir Putin, na sua passagem triunfal pelo Alasca, não houve absolutamente nenhum avanço nas negociações de paz, nem mesmo entendimentos que possam levar a um cessar fogo. A Rússia não recuou em nada das suas exigências em torno de um acordo para acabar com a guerra da Ucrânia, continua insistindo que só haverá acordo de paz se a Ucrânia aceitar a anexação de parte do seu território. Depois do encontro do Alasca e da reunião de Trump com o presidente da Ucrânia e seus aliados europeus, Putin escalou a guerra, ampliando e intensificando os ataques, numa demonstração do seu desprezo pelo patético presidente dos Estados Unidos. A Rússia espera, assim, consolidar e melhorar a sua posição no cenário da guerra para assegurar a anexação de parte significativa do território ucraniano.
A ofensiva da Rússia favorece Trump na sua estratégia para dobrar o governo de Kiev e seus aliados europeus, forçando um acordo de paz nos termos exigidos pelo presidente russo. Quanto mais frágil e ameaçada a Ucrânia, maior o poder dos Estados Unidos de imposição de vantagens em troca de algum apoio para garantir a sobrevivência do Estado ucraniano. Até porque, segundo o desprezível presidente dos Estados Unidos, a Ucrânia ainda vai ficar "com muito território" depois que ceder parte ao inimigo invasor. Ninguém sabe o que Trump e Putin conversaram secretamente, ao longo de três horas, no encontro do Alasca. Mas não é certo que tenham feito acertos de mútuos interesses e à revelia da Ucrânia, cada um tirando vantagens e explorando parte das riquezas desta nação. Herdeira do czarismo, a Rússia pretende mesmo anexar toda Ucrânia. Putin não esconde as suas intenções expansionistas quando declara que a Ucrânia sequer deveria existir como nação.
Os Estados Unidos podem apoiar a defesa da Ucrânia com a venda de armas, num negócio bastante lucrativo enquanto a guerra prosseguir, exigindo em troca a exploração das reservas ucranianos de minerais estratégicos. Um acordo do expansionista Putin com o empresário Trump levaria à paz na região com a divisão dos pedaços da Ucrânia, que ganharia em troca um arremedo de autonomia política no que sobraria do território. A Ucrânia não tem as maiores reservas de terras raras do mundo - a liderança é da China -, mas possui grandes e importantes recursos minerais de lítio, grafite, titânio, lantânio, cério e neodímio, fundamentais para a indústria de telecomunicação, aeronáutica, aeroespacial, automotiva, energética e militar. Com os minerais estratégicos ucranianos, os Estados Unidos pretendem reduzir a dependência do suprimento da China, principal adversário na disputa geopolítica global.
Como homem de negócios de discutível sucesso, Trump não parece entender de geopolítica se pensa conquistar a simpatia de Putin e constituir uma aliança com a Rússia para isolar a China, principal adversário na disputa pela hegemonia mundial. E ainda está disposto a entregar aos russos parte do território ucraniano que concentra muito das riquezas minerais da Ucrânia. Putin é um estrategista e tem a ambição de restaurar, ao menos em parte, o império czarista na Eurásia, e a Rússia tem relações sólidas com Beijing, sendo parte ativa do agrupamento do BRICS, que Trump vê como uma grande ameaça, principalmente diante da ampliação do bloco e das suas pretensões de disputar o predomínio do dólar no sistema financeiro mundial. Parece estranho que Trump pretenda isolar a China através de uma improvável aliança com a Rússia, ao mesmo tempo em que pune a Índia com altas tarifas por ser uma grande importadora do petróleo russo. Embora também faça parte do BRICS, a Índia é um aliado dos Estados Unidos e possui a quinta maior reserva mundial dos minérios estratégicos.
Como não dá para entender a estratégia errática de Trump, se é que ele tem mesmo uma estratégia, seus movimentos confusos e indecifráveis estão provocando uma desarticulação da estrutura de poder global e do sistema econômico internacional. Com o seu "America First", seja lá o que isso significa, o excêntrico do Salão Oval da Casa Branca pode acelerar o declínio do império americano, entregando à China a hegemonia global.
Sérgio Buarque, economista