A atualidade em Nabuco
No abalizado conceito de Gilberto Freyre, Nabuco viria a ser "O grande brasileiro do seu tempo e de todos os tempos"..............

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Não me passou despercebido o dia 19 de agosto. Naquela data, em 1849, nascia no sobrado 147, localizado na antiga Rua Aterro da Boa Vista, hoje, Rua da Imperatriz Tereza Cristina, Joaquim Aurelio Barreto Nabuco de Araújo. No abalizado conceito de Gilberto Freyre, Nabuco viria a ser "O grande brasileiro do seu tempo e de todos os tempos".
A lembrança me veio por conta da atual conjuntura nacional marcada por um ambiente de radicalização, agravado, na opinião de muitos brasileiros, pela desconfiança nas instituições e pela carência de lideranças políticas capazes de superar impasses, renovando esperanças no nosso futuro.
Diante de um quadro crítico, é natural o apelo à ancestralidade que abriga antepassados que, a seu tempo, contribuíram para a construção da nação brasileira. Nabuco faz parte desta respeitável ancestralidade. É o que afirma com a autoridade legitimada por uma trajetória de honradez e conquistas, o político de sólida formação intelectual, Cristovam Buarque: "Nabuco é um dos 'pais fundadores' da nossa pátria".
De fato, a afirmação encontra amparo na compreensão de Nabuco assim definida pelo saudoso pesquisador, escritor e professor Roberto Cavalcanti de Albuquerque, homem de ideias e fazeres transformadores: "Nabuco, personalidade vária e complexa, transborda este construto bipolar (razão e imaginação; razão e sentimento)", porque "nela 'a impressão aristocrática' (inglesa), 'a impressão literária' (francesa), 'a impressão artística' (italiana), a impressão da 'civilização material' (estadunidense) como que interferem no evoluir do seu pensamento político, impedindo que o liberal que ele sempre foi se completasse no republicano".
Na "personalidade vária", couberam o político, grande tribuno, o literato, o historiador, o diplomata pan-americanista, o pensador, o jornalista, o poeta, o agitador e reformador social, o destemido abolicionista, o jovem cético que findou seus dias abraçado à fé católica.
Sobre a vida e obra de Nabuco a bibliografia é imensa e riquíssima. Basta consultar "as indicações bibliográficas" que compõem a biografia de autoria da historiadora Ângela Alonso, Joaquim Nabuco. Os salões e as ruas (Companhia das Letras. São Paulo, 2007). O acervo é monumental.
No entanto, Nabuco por ele mesmo, é o melhor caminho para conhecê-lo. Minha Formação mais que autobiografia é uma corajosa exposição de grandezas e fraquezas, angústias existenciais e inquietações intelectuais de um espírito elevado.
No capítulo Massangana, nome do engenho de onde saiu aos oito anos, carregando o luto pela morte de sua madrinha, D. Ana Rosa Falcão de Carvalho, para morar com os pais no Rio de Janeiro, ele expressa o apego às raízes como "o desenho de criança", jamais esquecido pelo homem, como "o traço todo da vida". Assim o cosmopolita Nabuco definiu seu sentimento afetivo de pertença ao afirmar: "A verdade é que sinto cada dia mais forte o arrocho do berço; cada vez sou mais servo da gleba brasileira por essa lei singular que prende o homem à pátria com tanto mais força quanto mais infeliz ela é e quanto maiores são os riscos e incertezas que ele mesmo corre".
Na juventude, diante dos impulsos do lirismo e da política, Nabuco confessa: "Minhas ideias eram uma mistura e uma confusão; havia de tudo no meu espírito". Porém, ao longo da vida, e experiência e a reflexão cristalizaram firmes convicções assim descritas: "Politicamente, o fundo liberal ficou intacto, sem mistura sequer do tradicionalismo. Seria difícil colher em todo meu pensamento um resquício de tendência conservadora. Liberal eu o era de uma só peça; o meu peso, a minha densidade democrática era máxima".
Verdade! Nabuco era um democrata com profunda sensibilidade social. Compreendeu a dimensão histórica da escravidão ao sentenciar: "A escravidão permanecerá por muito tempo como característica nacional do Brasil". Vem, daí a atualidade do reformador social na medida em que se entregou à causa abolicionista, lutando obstinadamente pela emancipação do escravo o que consistia na liberdade, no acesso democrático à terra e à educação pública. Ou seja, uma vigorosa proposta inclusiva, de que ainda carecemos, como alicerce de uma nação justa.
Jamais teve receio de pagar preços que, efetivamente, pagou nas desventuras eleitorais. Não mediu palavras para o realismo canhestro que pervade a atividade política e embarga a virtude republicana dos grandes estadistas. Disse: "Nunca fui o que se chama verdadeiramente um político, um espírito capaz de viver na pequena política e de dar aí o que tem de melhor. Em minha vida, vivi muito da política com P grande, isto é, da política que é história, ainda hoje vivo, é certo que muito menos. Mas para a política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos, tenho esta dupla incapacidade".
Passados quase 150 anos, a abolição é uma obra inacabada. A desigualdade social desafia, há décadas, uma agenda reformista. Suas amarras são as raízes de uma sociedade escravocrata. Vale, pois, o apelo ao exemplo de Joaquim Nabuco.
Nos seus derradeiros momentos, ele balbuciou ao médico: "Doutor, pareço estar perdendo a consciência...Tudo Menos isso". A consciência humana é finita por natureza. No entanto, a consciência histórica é atemporal. Foi esta consciência que Nabuco legou ao Brasil.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco