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O Rio das mortes

Essa violência no Rio de Janeiro não começou ontem - mas desde que começou, muito pouco foi combatida ....................................

Por IVANILDO SAMPAIO Publicado em 26/08/2025 às 0:00 | Atualizado em 26/08/2025 às 14:43

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Durante muitos anos o Rio de Janeiro foi chamado, aqui e lá fora, de "A Cidade Maravilhosa". E merecia isso. Quando ainda era a Capital da República e, portanto, sede dos Três Poderes, ocorriam lá os grandes acontecimentos políticos e Culturais do País. Era no Rio onde se editavam os jornais e revistas que pesavam sobre a opinião pública; onde brilhavam os astros e estrelas do "showbiz"; onde o samba descia do morro como a água escorria as montanhas; onde lindas mulheres ocupavam as capas dasrevistas e muito mais: lá estavam bares e boates que consagravam a noite; era lá que ficava o Beco das Garrafas, onde consolidou-se a Bossa Nova; os hotéis de luxo, como o Copacabana Palace; os clubes de futebol amados do Extremo-Norte ao Extremo Sul, como o Flamengo;o Vasco; O Fluminense e o Botafogo. Tudo isso era o Rio de Janeiro e muito mais. O Rio tinha Tom Jobim e Vinicius de Moraes; Tinha Zé Keti e Nara Leão; tinha Antonio Maria e Dolores Duran. Não era pouco...

Morei e trabalhei no Rio por quase sete anos - e se não fui testemunha de tudo isso que citei, grande parte disso eu vi de perto. Cheguei lá quando o Rio de Janeiro já não era a capital federal; e sim a capital do Estado da Guanabara. Mas, ainda era a cidade com as mesmas virtudes que a colocaram no mapa das mais belas do mundo, com as praias mais famosas entre as praias famosas dos cinco continentes; com o Bondinho do Pão de Açúcar, subindo e descendo sempre apinhado de turistas; e, do outro lado, lado, o Cristo Redentor, no alto do Corcovado, de braços abertos para quem morava, chegava e partia da cidade, recebendo do mesmo modo a mesma bênção. A cidade não compactuava com a violência, não distribuía medo, não vivia em permanente convivência forçada e obrigatória com o crime organizado e o terror. Os morros eram inspiração para o samba e os violões criativos - e não o refúgio de traficantes, fugitivos da justiça, chefões do crime organizado, palcos permanentes de tiroteios entre a polícia e os criminosos, onde muitas vezes quem morrem são os inocentes, ente eles crianças que estudavam em escolas públicas, vítimas de balas perdidas, Disparadas de ambos ao lados. Onde está, meu Deus, aquele Rio de Janeiro de outrora?

Essa violência no Rio de Janeiro não começou ontem - mas desde que começou, muito pouco foi combatida. Alguns estudiosos do problema culpam a gestão do falecido governador Leonel Brizola pelo começo de tanta desgraça. E tudo teria se iniciado pela "guerra do jogo", quando alguns bicheiros, como "Seu Natal" da Portela, Carlinhos Maracanã, Castor de Andrade, Anisio Abraão e uns poucos mais, foram dando lugar a herdeiros mais novos, que iniciaram uma guerra interna ,rompendo um acordo tático de respeito às áreas ocupadas, onde um não entrava no domínio de outro. Isso evoluiu para a "guerra do tráfico", pelo comércio das drogas.

No Palácio da Guanabara, o governador Brizola fechava os olhos para a briga interna dos contraventores, e da própria contravenção. Naquela terra de ninguém, teriam começado a crescer o tráfico de drogas, os assaltos, a chantagem, o contrabando de armas e - evidentemente - a chegada do "crime organizado", e os grandes criminosos, que hoje mandam e desmandam na cidade. Os números são estarrecedores: este ano, mais de 100 ônibus foram incendiados pelos bandidos; um número expressivo de veículos pesados foram roubados com suas cargas à luz do dia; dezenas de crianças e adolescentes foram vítimas de balas perdidas no confronto entre a polícia e os criminosos; a Zona Oeste da cidade, capturada pelas Milícias, das quais são acusados de fazer parte integrantes da própria Polícia, hoje é terra de ninguém; todos os morros da cidade - e o Rio é circundado por morros - hoje "pertencem" a algum dos ramos da criminalidade, que não respeita nem teme o Poder Público, como ficou provado com a morte da vereadora Marielle Franco, e no desafio quase diário a ação da Polícia. Piquetes bloqueiam avenidas, subúrbios inteiros são isolados pela bandidagem, o transporte ferroviário é interrompido; trabalhadores não descem nem sobem nos morros sem a concordância dos bandidos, que também cobram pedágio de quem vai e volta. Dom Calógero Vizzinni, o lendário chefe de todos os chefes da Mafia Siciliana, diante desse pessoal não entrava sequer no segundo time.

O Governador Cláudio Castro, cantor gospel e evangélico, "bolsonarista" de raiz, tenta responder a esse caos absoluto, mas tem pouca ou nenhuma credibilidade, até porque isso não começou com ele e nem com ele vai terminar. Existem exemplos, mundo afora, de cidades dominadas pelo crime que foram, mais tarde, retomadas por agentes da Lei e da Ordem e devolvidas à sociedade? Não sei... Mas sei que a Chicago dos anos 30 do Século passado era um exemplo de violência - nas mãos dos mafiosos e do crime organizado. Mas, mesmo assim, as brigas entre facções criminosas dos tempos da Lei Seca não cobravam seu preço da sociedade civil, como um todo. Para continuarmos falando dos Estados Unidos com seus casos de violência, Washington e Nova Iorque também viveram - e sobreviveram - num passado recente a tempos de crimes e de medo. Fica nesses poucos exemplos a esperança dos sobreviventes da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, dos fãs de Tom Jobim e Vinicius de Morais - da massa anônima que ainda freqüenta o Maracanã em dias de jogo, na dúvida se no regresso vai chegar com vida no morro ocupado onde mora e de onde não tem para onde sair.

Ivanildo Sampaio,  jornalista

 

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