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Dia Mundial Humanitário: o 19 de agosto ignorado por um mundo em guerra

Em 2008, a ONU instituiu 19 de agosto como o Dia Mundial Humanitário. Neste dia. em2003. o diplomata Sergio Vieira de Melo morria vítima do terror.

Por ALAN CAVALCANTI E RENNAN PASTICH Publicado em 20/08/2025 às 0:00 | Atualizado em 20/08/2025 às 15:29

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A resolução da Assembleia Geral afirmava que o objetivo da data era “contribuir para o aumento da conscientização pública sobre as atividades de assistência humanitária em todo o mundo e sobre a importância da cooperação internacional”, além de “homenagear todo o pessoal humanitário, das Nações Unidas e associados, que tenha atuado na promoção da causa humanitária”. A escolha não foi por acaso: em 19 de agosto de 2003, um atentado terrorista atingiu o Hotel Canal, em Bagdá, sede da Missão de Assistência das Nações Unidas para o Iraque (UNAMI), matando 22 trabalhadores humanitários, entre eles, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello.

Na ONU, Sérgio construiu uma carreira marcada por feitos notáveis: auxiliou o retorno de quase meio milhão de refugiados no Camboja, serviu no Líbano, liderou a missão especial das Nações Unidas no Kosovo (ex-Iugoslávia) e foi um dos principais responsáveis por um dos maiores sucessos da história da organização: a reconstrução do Estado e a construção da democracia em Timor-Leste. Reconhecidamente um dos maiores funcionários da história das Nações Unidas, Vieira de Mello morreu acreditando na bandeira da ONU e na força do multilateralismo como instrumento de resolução de conflitos. O título de sua biografia, O homem que queria salvar o mundo, não poderia ser mais apropriado.
Em 19 de agosto de 2025, é preciso reforçar a relevância do Dia Mundial Humanitário, criado em homenagem às vítimas do atentado em Bagdá. Segundo a atualização mais recente do programa da Universidade de Uppsala, na Suécia, que cataloga os conflitos existentes, “o número de conflitos armados no mundo atingiu um recorde histórico em 2024”, passando de 59 para 61, o maior número desde o início da série histórica, em 1946. Desses, pelo menos 11 chegaram ao status de guerra, ou seja, conflitos que resultaram em ao menos mil mortes em um ano. As estatísticas são alarmantes: tomando 2010 como base, o número de conflitos envolvendo Estados quase dobrou, e o total de mortes relacionadas a conflitos armados quintuplicou. Além disso, a violência não se restringe mais aos combatentes: o número de civis mortos aumentou 31% entre 2023 e 2024.
Esse cenário de agravamento global ocorre em paralelo ao enfraquecimento das instituições multilaterais e à mudança de postura normativa das superpotências. Antes, o debate girava em torno de se as intervenções dos Estados Unidos deveriam ou não ser chanceladas por organismos como a ONU. Samantha Power, ex-embaixadora dos EUA na ONU e biógrafa de Sérgio Vieira de Mello, relata a frustração com o papel dos Estados Unidos na arena internacional. Segundo ela, os EUA deveriam “fazer mais” para impedir genocídios e frear o surgimento de novos conflitos. A autora se referia, por exemplo, à Guerra da Bósnia, que resultou em massacres como o de Srebrenica, interrompidos apenas após uma intervenção norte-americana.
Hoje, os Estados Unidos estão cada vez mais distantes do ideal humanitário defendido por Samantha Power. Durante a administração Trump, houve um enfraquecimento significativo da USAID, que é uma das principais instituições de assistência humanitária do mundo, além de um realinhamento de prioridades externas que, segundo organizações como a Anistia Internacional, contribuiu para o enfraquecimento de democracias. Esse movimento incluiu interferências políticas em países como Brasil e Colômbia, além do apoio a El Salvador, cujo governo é amplamente denunciado por violações de direitos humanos.
De 2010 para cá, o mundo assistiu ao agravamento das crises humanitárias em conflitos armados na Síria, Sudão, Sudão do Sul, Iêmen, Etiópia, República Democrática do Congo, Afeganistão, na Faixa de Gaza e nos territórios ocupados e, mais recentemente, na Ucrânia. Em 2025, o colapso humanitário parece mais iminente do que nunca e na medida que as relações internacionais se tornam mais tensas, o espaço para intervenções humanitárias multilaterais encolhe.
Gaza é um exemplo emblemático dessa dificuldade de ação internacional coordenada. Desde o atentado do Hamas em 7 de outubro de 2023, 14 resoluções que pediam a libertação de reféns, clamavam por um cessar-fogo e exigiam pausas e acesso humanitário foram vetadas por Estados Unidos, Rússia e China, incluindo uma resolução proposta pelo Brasil, em 18 de outubro de 2023, que condenava o ataque do Hamas e solicitava pausas humanitárias, vetada pelos EUA sob o governo de Joe Biden. As consequências dessa inação das grandes potências ficam evidentes na prática: nesta terça-feira, 12 de agosto de 2025, a OMS denunciou que a entrada de ajuda humanitária em Gaza continua ineficiente e que a situação dos sistemas de saúde é “catastrófica”.
O caso de Gaza é apenas um entre vários que expõem a fragilidade da ação multilateral diante de colapsos humanitários. O cenário global é sombrio. Ainda assim, mesmo enfraquecida, a resposta humanitária permanece como a última linha de defesa para aqueles que perderam qualquer forma de proteção institucional em zonas de conflito.
Nesses tempos difíceis, a memória de humanistas como Sérgio Vieira de Mello precisa ser exaltada. Apesar de ter inspirado um filme da Netflix estrelado por Wagner Moura, Sérgio ainda é pouco conhecido no imaginário da população brasileira. Seu legado, porém, permanece vivo e talvez nunca tenha sido tão urgente para repensarmos as intervenções humanitárias em um mundo onde a solidariedade internacional é constantemente testada pelos interesses estratégicos das potências.
A história recente mostra que neutralidade, imparcialidade e independência, pilares do humanitarismo, estão sob ataque, e que salvar vidas exige, hoje, não apenas coragem no terreno, mas também enfrentamento político no mais alto nível, virtudes essas das quais Sérgio era mestre. Se a comunidade internacional não colocar a proteção de civis acima do cálculo geopolítico, crises como a de Gaza serão a norma. E, nesse cenário, o silêncio e a inação não serão apenas cúmplices: serão parte ativa da tragédia.

Alan Cavalcanti e Rennan Pastich, mestres e doutorandos em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco

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