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Valdecir Pascoal: Direito Financeiro: do analógico ao digital

A Carta de 1988 instituiu um Direito Financeiro. Passadas mais de três décadas, o Congresso não aprovou a Lei para disciplinar suas normas

Por VALDECIR PASCOAL Publicado em 03/08/2025 às 0:02

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O Direito Financeiro, ramo clássico da ciência jurídica, responsável por disciplinar a Atividade Financeira do Estado — arrecadação de receitas, realização de despesas, endividamento público, orçamento e controle da gestão — vive mais um momento decisivo na era digital, mesmo sem ter superado todos os desafios “analógicos” advindos do século 20.

A Carta de 1988 instituiu um verdadeiro Direito Financeiro Constitucional, com inúmeros dispositivos dedicados à matéria. Passadas mais de três décadas, contudo, o Congresso ainda não aprovou a Lei Complementar prevista para disciplinar as suas normas gerais. A antiga Lei 4.320/64, embora recepcionada, não é suficiente para dar conta das inovações constitucionais, como o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o papel ampliado dos Tribunais de Contas. As lacunas vêm sendo preenchidas, sem a devida segurança jurídica, por LDOs anuais e portarias federais — uma espécie de gambiarra normativa. Houve avanços, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) (2000) e o Arcabouço Fiscal (2023), mas essas normas tratam de temas específicos, e não da espinha dorsal das finanças públicas.

Ora, se os “fenômenos financeiros” já estavam em “rebelião” contra a ausência de normas gerais, o desafio agora é ainda maior: adaptar-se à lógica exponencial da era digital. Com o avanço de tecnologias disruptivas, como a inteligência artificial (IA), os modelos automatizados de gestão baseados em algoritmos, o blockchain (um tipo de registro digital descentralizado e imutável) e moedas digitais, torna-se urgente repensar os próprios fundamentos da atividade financeira estatal. Como reorganizar o ciclo orçamentário tradicional anual em um mundo que opera em tempo real? Como garantir a credibilidade fiscal quando moeda e contrato passam a ser reprogramáveis em código?

Vivemos, parafraseando Aldous Huxley, não mais um Admirável Mundo Novo, mas um Desafiador Mundo Digital, em que até a noção de soberania fiscal e monetária parece flutuar. A ascensão de criptomoedas privadas, contratos inteligentes (smart contracts), ativos tokenizados (tokenização é a transformação de bens ou direitos em representações digitais seguras e fracionáveis) e moedas digitais estatais (CBDCs) impõe desafios inéditos ao Direito Financeiro.

No Brasil, o projeto do Banco Central com o Drex — nossa moeda digital oficial — promete eficiência, rastreabilidade e inclusão. Mas talvez a experiência mais bem-sucedida seja o Pix. Criado em 2020, esse sistema público de pagamentos instantâneos já é usado por 93% dos adultos brasileiros. Para o Prêmio Nobel Paul Krugman, o Pix entrega o que as criptomoedas prometeram — mas nunca cumpriram: baixos custos, segurança e ampla inclusão financeira. Diz Krugman: “O Pix está substituindo dinheiro físico e cartões. Enquanto os EUA resistem à inovação por interesses corporativos e ideológicos, o Brasil talvez tenha inventado o futuro do dinheiro.” O economista Anh H. Le, do think tank saudita KAPSARC, também aponta que moedas digitais estatais podem reduzir a dependência de endividamento externo, reforçando a credibilidade fiscal e monetária dos países emergentes.

Mas os riscos também são evidentes. Criptomoedas privadas, marcadas pela volatilidade e anonimato, ameaçam a arrecadação, a soberania monetária e a integridade do sistema financeiro. Há registros de negociações privadas com criptoativos que escapam do radar do fisco e da legislação orçamentária. Na instigante tese “O Estado Fintech”, o jurista Renan Costa afirma que o Estado está se tornando uma plataforma digital, enquanto o Direito Financeiro — concebido para um Estado burocrático e analógico — precisa ser redesenhado. Ele propõe uma reforma em três dimensões: tecnológica (normatizar algoritmos e plataformas), democrática (fortalecer os controles institucionais) e social (assegurar inclusão e justiça fiscal).

E é nesse cenário que os Tribunais de Contas ganham novo protagonismo. Cabe a eles desenvolver novas metodologias de auditoria digital, capazes de acompanhar operações em blockchain, validar contratos automatizados e examinar algoritmos públicos, valendo-se, para tanto, de ferramentas seguras de IA. Isso exigirá formação técnica, análise de riscos, articulação interinstitucional e sensibilidade ética.

Aos legisladores, impõe-se a tarefa de alçar o Direito Financeiro a esse novo patamar, com a aprovação, ainda que tardia, da Lei Complementar de Finanças Públicas — consolidando o que está disperso, regulamentando institutos constitucionais surgidos na CF-88 e preparando o terreno para os novos fenômenos digitais.

O desafio maior, no entanto, é manter a essência do Direito Financeiro — proteger o bem comum, assegurar o equilíbrio fiscal e garantir a legalidade e a efetividade das políticas públicas — mesmo quando a forma de exercê-lo muda radicalmente. A inovação é inevitável. Se bem utilizada, ela pode garantir conformidade e ampliar a eficiência. Mas não há inovação legítima sem levar em conta o objetivo constitucional fundamental da redução das desigualdades, nem a eficiência sem justiça.

Valdecir Pascoal – Presidente do TCE-PE

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