Memória diplomática e futuro estratégico: como o Brasil deve reagir aos EUA
Ao longo da história, as relações entre Brasil e Estados Unidos passaram por diversos momentos de aproximação e tensão.................

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No final do século XIX, o Brasil buscou estreitar os laços com os EUA por meio do comércio de café e da aproximação diplomática, como na arbitragem da Questão de Palmas e no apoio tácito à Doutrina Monroe. Durante a Segunda Guerra Mundial, a cooperação se intensificou com o envio de tropas brasileiras à Europa e a cessão de bases aos Aliados, mas as expectativas brasileiras de maior retorno político foram frustradas no pós-guerra. Nos anos 1950 e 1960, o Brasil buscou financiamento externo e alinhou-se aos EUA no contexto da Guerra Fria, embora surgissem atritos comerciais e territoriais. A partir de 1974, com o governo Geisel, o país passou a adotar uma postura mais autônoma, denunciando acordos militares e diversificando parcerias, como no caso do Acordo Nuclear com a Alemanha. Mesmo nos períodos de maior tensão, evitou-se o rompimento completo das relações.
Apesar de sua resiliência histórica, a relação bilateral entre Brasil e Estados Unidos volta a ser pressionada por um contexto protecionista. As recentes tarifas impostas pelo governo Trump, sobretudo sobre setores industriais estratégicos como aço, alumínio e aviação podem ser catastróficos no curto prazo. O caso de Pernambuco ilustra com clareza os efeitos que podem ter as novas barreiras comerciais, se aplicadas. O Estado, cuja pauta exportadora aos Estados Unidos é composta majoritariamente por óleos minerais, produtos de aço e crustáceos, pode registrar uma queda significativa no comércio bilateral. Segundo dados oficiais do Governo Federal (Comex Stat), no primeiro semestre de 2025, as exportações de Pernambuco para os EUA somaram apenas US$ 6,5 milhões, o que representa uma contração de cerca de 61% em relação à estimativa para o mesmo período de 2024 (aproximadamente US$ 16,8 milhões), com implicações severas para a economia local, especialmente em polos industriais e logísticos, como o Complexo de Suape. As importações, por sua vez, revelam uma interdependência importante: incluem pneus, derivados de petróleo e polímeros, insumos industriais essenciais ao setor manufatureiro e ao abastecimento regional. O gráfico apresentado evidencia visualmente essa forte oscilação, destacando não apenas o impacto nacional, mas os efeitos desproporcionais em estados como Pernambuco. Isso tudo em um contexto ainda sem a aplicação das tarifas.Fonte: Elaboração própria com base em dados do Comex Stat (2025).
Diante desse cenário, é urgente que o Brasil recorra à estratégia que historicamente garantiu estabilidade nos momentos de tensão: o encapsulamento de crises, conceito desenvolvido a posteriori pelo embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa. Essa abordagem consiste em isolar disputas pontuais, como comerciais ou de direitos humanos, para que não contaminem a totalidade da relação bilateral. Ao longo da história, essa estratégia se provou eficaz em inúmeros episódios, como a reprovação americana ao Acordo Nuclear Brasil-Alemanha (1975), as críticas ao regime militar por violações de direitos humanos, e até mesmo a questão da espionagem revelada em 2013. Mesmo nesses momentos, o diálogo permaneceu aberto, como demonstrado pelos acordos de cooperação em defesa reafirmados em 2010 e 2012, e pelo reatamento político com os EUA após a visita de Dilma Rousseff em 2015.
Essa lógica deve agora orientar a resposta brasileira às tarifas de Trump. Em vez de escalar politicamente a disputa, é necessário retomar o diálogo econômico com os EUA em múltiplas frentes. Para isso, é recomendável uma atuação conjunta entre o Itamaraty e o setor empresarial, com destaque para as federações estaduais, como a FIEPE e a FIESP, e grandes exportadores atingidos pelas novas tarifas. A experiência bem-sucedida do CEO Forum, criado nos anos 2000 para promover a diplomacia empresarial, deve ser reativada como mecanismo de pressão legítima e negociação. Essa aliança técnico-política é capaz de exercer influência junto a órgãos americanos responsáveis por comércio exterior, como a Câmara de Comércio dos Estados Unidos, demonstrando os efeitos adversos das medidas sobre cadeias produtivas binacionais.
A gestão diplomática de conflitos setoriais sem contaminação política generalizada é uma conquista institucional brasileira e deve ser fortalecida. Afinal, os dados mostram que a interdependência comercial entre Brasil e EUA não é apenas nacional, mas profundamente regionalizada, como demonstra o caso de Pernambuco. Proteger essas conexões exige prudência, visão estratégica e articulação entre Estado e sociedade. O futuro da relação bilateral dependerá, mais uma vez, da nossa capacidade de operar com pragmatismo responsável: reagindo com firmeza, mas sem ruptura; negociando tecnicamente, com apoio político dos Estados; e, sobretudo, isolando as crises para garantir que a cooperação bilateral siga prosperando. Em um momento de incerteza global, é a memória diplomática que deve guiar o presente.
Rodrigo Pedrosa Lyra, professor de Relações Internacionais no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (DCP-UFPE).