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A triste arte da censura

Ao lado das mídias tradicionais (rádio e TV), é cada vez mais relevante o espaço digital. No mundo inteiro. E ele precisa ser livre.

Por JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHOjp@jpc.com.br Publicado em 25/07/2025 às 0:00 | Atualizado em 25/07/2025 às 10:07

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No programa Em Pauta da Globonews, na sexta da semana passada, o jornalista Guga Chacra deu importante opinião em defesa da Liberdade de Expressão. Trechos de sua fala:

"A administração americana está de olho no ministro Alexandre de Moraes. Ele proíbe cidadãos americanos e residentes permanentes, que são brasileiros e vivem nos Estados Unidos, no caso Paulo Figueiredo e Rodrigo Constantino (tem o Alan dos Santos que eu não sei o estatuto migratório dele especificamente) se manifestam... Eu acompanho aqui as redes sociais e posso ver opiniões diversas. Na visão dos Estados Unidos, e de muita gente aqui, eles sendo calados por um ministro do Supremo Tribunal. Hoje é ele, no outro dia pode ser eu".

Relevante é que, pela primeira vez, alguém da Grande Mídia fala sobre esse tema. É algo interdito. Não tanto em que seus colegas se prostam, em um silêncio cúmplice, no altar do Poder Supremo. Calados, todos. Curiosamente, no domingo passado, o mesmo Guga Chacra não participou de seu programa semanal, da Globonews Internacional . O que aconteceu? Segundo informaram, laconicamente, "estava de férias". Repentina e fora de época. Estava mesmo?, eis uma questão. Ou foi apenas uma advertência para os coleguinhas da bancada? Veremos depois. Seja como for, começo o texto dessa coluna com ele.

E já me lembro que, para o filósofo da Universidade de Veneza (Itália) Umberto Galimberti ( Il Gioco delle Opinioni) , " o símbolo do herói moderno deveria ser Ulisses". Não o brasileiro, Ulisses Guimarães, que converteu a resistência democrática ao Golpe de 1964. Ou o Ulisses de Joyce, que nem se chamava Ulisses e eram dois; com o romance relatando um dia (16.06.1904) nas vidas de Leopold Bloom e Stephen Dedalus, em Dublin (Irlanda).

Galimberti propõe, como esse herói, o Ulisses grego, Rei de Ítaca (no mar Jônico). Por sua invenção do Cavalo de Troia . Em cujo ventre foram guardados soldados que, dentro dos muros, à noite abriram as portas da cidade. Quando se acredita no que se diz nas escolas. Porque Ulisses seria portador dos valores básicos que se exigiam de uma sociedade moderna, mentira e astúcia .

Retraduzindo essas palavras, para dar-lhes mínimos de dignidade, astúcia passaria a ser a "capacidade de encontrar o ponto de equilíbrio entre forças fortes". Enquanto mentir significaria "habitar a distância que separa a aparência da realidade". E "escapar da engenhosidade dos que acreditam que as coisas são, sempre, o que aparentam ser". Com Ulisses, inaugura-se a dupla consciência da realidade e sua máscara.

Digo isso porque se vê, no Brasil de hoje, a sagração da censura, sobretudo na mídia eletrônica, como instrumento de cooperação a quem pretende exercer a liberdade de expressão. Para evitar opiniões contra o governo. Ou sob o pretexto de impedir a propagação de mentiras e astúcias. Em qualquer caso, com restrições que resultem inaceitáveis em qualquer país verdadeiramente democrático.

Nos Estados Unidos por exemplo, lá como (em tese) também aqui (art. 220, § 2º da nossa Constituição), existe aplicação a qualquer tipo de censura. A regra está na primeira emenda do Bill of Rigths (Carta dos Direitos, nome coletivo que se dá às 10 primeiras emendas à Constituição Norte-Americana, de 1789), redigida em 1791 por Joseph Madison; depois presidente da República, de 1809 a 1817 e considerado um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos. Nasceu em Conway (EUA) e morreu muito tempo, em Montpellier (França), mas essa é outra história. Diz a emenda: O Congresso não fará nenhuma lei... restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa... . ( O Congresso não fará nenhuma lei... cerceando/restringindo a liberdade de expressão, ou a imprensa... ).

Verdade que a Suprema Corte passou a permitir, desde 1919, limites pontuais à livre expressão. Com a doutrina do Perigo Claro e Presente¸ sagrado no caso Schenck x Estados Unidos . Confirmada, posteriormente, com as doutrinas do Gravity on the Evil (1924) e Free Speech (1945). Princípios esses renovados e alargados em 1982 com a doutrina, hoje dominante no país, do Discurso Desprotegido, estabelecida no caso New York x Ferber.

Mas isso, atenção senhores, ocorre em apenas três situações específicas: pornografia (especialmente infantil), dados do governo (sobretudo aqueles classificados como reservados ) e segredos das empresas (como a fórmula da Coca-Cola).

Sem quaisquer implicações com ideologias, ou supostas tentativas de golpe, como normalmente ocorrem por aqui. E sem uma única lei nos Estados Unidos, bom lembrar, para prevenir Fake News . Sem que se possa dizer que a democracia, por lá, não ande bem.

Pouco depois, em 1996, o Congresso americano aprovou a Lei de Decência nas Comunicações; em que, na Seção 230, as redes sociais permanecem isentadas sobre conteúdos postados pelos usuários. Os Democratas, em contradição aberta com a defesa da Liberdade de Expressão que adotaram em seus discursos, queriam o fim da seção 230. Sem sucesso, na via legislativa, recorreram à Suprema Corte. Já tinha lá quatro ministros ( Justiça , assim se chamam, para diferenciar dos juízes de carreira conhecidos como Juízes ) indicados pelo próprio Partido Democrata.

Bastaria um voto apenas, entre os cinco ministros indicados pelo Partido Republicano, e teve um susto. Quando a Corte, por 9 x 0, decidiu estar a Seção 230 conforme a tradição americana da Liberdade de Imprensa. Certo que nos Estados Unidos, tão cedo, haverá qualquer mudança nesse campo.

Complicado é que falsificar essa verdade, no sentido de esconder a realidade, é a marca do Brasil de hoje. A da banalização da esperança. A das certezas construídas sem nenhuma base. A das mentiras usadas para beneficiar partidos políticos. A das astúcias utilitárias.

Ao lado das mídias tradicionais (rádio e TV), é cada vez mais relevante o espaço digital. No mundo inteiro. E ele precisa ser livre. Agora nos perguntamos se aqui vai ser tudo controlado. Teremos em vigor, afinal, o Big Brother (o Grande Irmão ) previsto por George Orwell (no livro 1984 )? Com quem?, controlando a informação. Será desalentador, leitor amigo, se assim vier a ser. E, grave, tudo caminha nessa direção.

Em seu comovente painel sobre a eterna luta entre indivíduo e sociedade, que é Servidão humano , escreveu Somerset Maugham: "O poder é a lei, a consciência e a opinião pública". Deveríamos seguir essa trilha. Reconhecendo a lição de que homens livres não são apenas aqueles que têm consciências livres. Mas, também, os que podem ser capazes de se manifestar livremente. De dizer o que quiserem (respondendo por seus eventuais excessos, claro, com base no Código Penal).

Longe da "musa da autocensura", como a ela se referia George Steiner (no Livro da revolução ). E sem uma censura oficial , hoje crescentemente exercida pelos tribunais. Como denunciado por Guga Chacra, vimos isso no começo do texto. Essa, leitor amigo, é que é a verdadeira Democracia.

José Paulo Cavalcanti Filho, advogado

 

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