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O peso do jaleco branco: a crise silenciosa na saúde de quem cuida

"No meio do inverno, eu finalmente aprendi que havia em mim um verão invencível.", escreveu Albert Camus .....................................

Por TUNAI GALVÃO Publicado em 24/07/2025 às 0:00 | Atualizado em 24/07/2025 às 6:59

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Desde os tempos antigos, o cuidado em saúde esteve ligado à ideia de sacrifício. Nas sociedades pré-históricas, o xamã era um curador que enfrentava dor e isolamento para adquirir o "direito" de curar. No Egito Antigo, os médicos eram sacerdotes. Na Grécia, o juramento de Hipócrates selava uma entrega quase sagrada ao outro. Essa cultura atravessou séculos. Com o cristianismo, cuidar dos doentes virou ato de caridade divina. Monges, freiras e, depois, enfermeiras como Florence Nightingale personificaram o ideal da abnegação total. A fundadora da enfermagem moderna chegou a alertar que "o mártir se sacrifica em vão", mas sua imagem de dedicação irrestrita continua sendo reforçada até hoje.

Esse legado criou o que chamamos de "inconsciente coletivo" da saúde: a expectativa de que o bom profissional deve ser infalível, imune à dor e disposto a se colocar sempre em segundo plano. Cuidar demais pode adoecer O resultado dessa cultura é palpável e alarmante. Um estudo publicado em 2012 nos Estados Unidos revelou que 45,8% dos médicos apresentavam sintomas de burnout. Em 2022, esse número saltou para 62,8%. Especialidades da linha de frente, como medicina interna e emergência, ultrapassaram 80%. No Brasil, a situação não é diferente. Uma pesquisa com mais de 4 mil médicos mostrou que quase 30% já pensaram em suicídio.

E os riscos são ainda maiores entre mulheres: médicas têm 76% mais chance de suicídio do que outras mulheres da população geral. Enfermeiras também aparecem entre as profissionais com maiores taxas de ideação suicida. Durante a residência médica, considerada uma das fases mais exigentes da formação, até 76% dos profissionais relatam sintomas de exaustão emocional e cinismo já no primeiro ano. E o mais grave: estudos indicam que mesmo quando a carga horária é reduzida, o burnout persiste. Ou seja, o problema não está apenas nas horas trabalhadas, mas na cultura que normaliza o esgotamento e o sofrimento. Mais que cansaço: uma cascata perigosa Burnout não é apenas estar cansado. É uma síndrome que envolve exaustão emocional, despersonalização e perda de sentido no trabalho. E mais: é um gatilho para transtornos mentais graves.

Uma revisão científica recente apontou que médicos com alto grau de burnout têm quase seis vezes mais risco de ideação suicida. Entre os fatores que contribuem para esse cenário estão a pressão por desempenho, o perfeccionismo, a falta de apoio institucional e até o fácil acesso a meios letais. O medo de julgamento, somado ao estigma da saúde mental, impede muitos profissionais de pedir ajuda. É hora de cuidar de quem cuida Não basta campanhas pontuais de "bem-estar" ou palestras motivacionais. É necessário romper com o mito do herói de jaleco branco e promover mudanças reais. Reduzir jornadas abusivas, criar espaços seguros de escuta, combater lideranças tóxicas e, principalmente, valorizar a saúde mental dos profissionais são ações urgentes.

Cuidar de si não é egoísmo, é um dever ético. Um profissional esgotado não consegue oferecer o melhor cuidado ao paciente. Precisamos de uma nova cultura na saúde, em que o autocuidado seja parte da vocação, e não uma transgressão. Como escreveu Albert Camus: "No meio do inverno, eu finalmente aprendi que havia em mim um verão invencível." Que esse verão floresça em todos que vestem o jaleco não como resistência solitária, mas como um movimento coletivo de transformação.

Tunai Galvão, psiquiatra

 

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