Tributação, lógica quântica, IOF, gatinhos fofos e a incerteza de Schrödinger
Compreender física quântica e o sistema tributário brasileiro requer uma boa dose de imaginação e desapego da lógica linear tradicional......

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Uma das teorias mais populares da física quântica refere-se ao experimento mental conhecido como o "gato de Schrödinger", que explica os princípios da superposição e da incerteza. Numa simplificação, segundo essa teoria, enquanto não são observadas, as partículas subatômicas podem existir simultaneamente em diversos estados.
Para explicar o conceito de superposição, Schrödinger recorre à imagem de um gato colocado dentro de uma caixa junto com um frasco de veneno e um mecanismo acionado por decaimento atômico. Pelos princípios da mecânica quântica, enquanto a caixa permanecer lacrada, o animal habita um estado paradoxal — nem vivo, nem morto, mas ambos ao mesmo tempo, suspenso na indeterminação dos possíveis.
O direito tributário brasileiro sempre conviveu com a incerteza: o paradoxo da eterna revisão de teses, da modulação de efeitos na declaração de inconstitucionalidade, a revisão de coisa julgada inconstitucional e a limitação dos seus efeitos nas relações de trato sucessivo. Tudo isso é tão estranho e complexo para o contribuinte quanto a lógica quântica e a superposição de Schrödinger.
Os tributos no Brasil, ao mesmo tempo, existem e não existem; num eterno estado de coisas paradoxal e realidades superpostas. Cada contribuinte experimenta o seu próprio multiverso tributário a depender de um número infinito de variáveis que incluem as oscilações da jurisprudência, aleatoriedades processuais e a superposição dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Nada é mais exemplificativo da lógica quântica de nossa tributação quanto o debate recente sobre o IOF. Vale relembrar. Em junho deste ano, o governo editou três decretos para aumentar o IOF, imposto que incide sobre operações financeiras. Numa queda de braço com o Executivo, o Congresso editou decretos parlamentares que suspenderam o aumento proposto pelo governo.
O governo recorreu ao STF. Em decisão liminar, o relator Min. Alexandre de Moraes resolveu manter cautelarmente a suspensão do aumento da carga tributária e convocou o Executivo e o Legislativo para uma conciliação intermediada pela Corte. O IOF, como o gato de Schrödinger, embalado na caixa da incerteza, existia e não existia, "suspenso na indeterminação dos possíveis".
Nesta quarta-feira (16), o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, autorizou o retorno da eficácia do Decreto 12.499/2025, que promoveu o aumento das alíquotas do IOF. Após audiência de conciliação e novas manifestações técnicas, o STF concluiu que a majoração respeitou os limites legais e a função extrafiscal do tributo. O contribuinte que observa perplexo, acaba de descobrir: o gato está vivo.
Aliás, o próprio governo já havia recorrido à imagem de gatinhos fofos para tentar conquistar a simpatia do eleitor. No meme bem-humorado, o governo defende a tese de que o aumento do IOF só atinge a parcela mais rica da população. Gatos podem ser populares na internet, mas costumam ter garras afiadas e apetite voraz quando se trata de tributos.
Na prática, a incidência do IOF foi ampliada sobre uma série de operações que afetam direta e indiretamente pessoas físicas e jurídicas, inclusive pequenos empreendedores. O aumento inclui a tributação de empréstimos tomados por empresas do Simples Nacional e MEIs, aportes em previdência privada, gastos no cartão de crédito no exterior, compra de moeda estrangeira e investimentos em LCA, LCI e FIDIC. Esses investimentos não são apenas coisa de rentista e gente rica da Faria Lima. São produtos financeiros que servem de linha de crédito para pequenos produtores rurais, por exemplo. Aumenta o IOF, aumenta o custo do dinheiro.
O impacto da cobrança vai muito além dos "ricos com mais de 600 mil na conta", ao contrário do que argumentam os simpáticos gatinhos do governo nas redes sociais.
É discutível se o aumento da carga tributária é ou não necessário para fechar contas, se há ou não outras medidas fiscais mais adequadas. Fica evidente, no entanto, nossa dificuldade crônica de enfrentar o problema estrutural de um sistema que recorre à tributação de operações econômicas rotineiras para suprir necessidades de arrecadação. A decisão do STF deixa intacta a lógica de que é mais simples e politicamente viável tributar o consumo, o crédito e o câmbio — enquanto seguimos ineficientes na tributação da renda e do patrimônio.
Em seu voto, Moraes reconheceu que o IOF possui natureza extrafiscal e pode ser modulado por decreto do Executivo, desde que sua finalidade seja regulatória e não meramente arrecadatória. O ministro destacou que a nova regulamentação busca padronizar alíquotas e reduzir distorções, como o uso excessivo de fundos de direitos creditórios (FIDCs) com fins de planejamento tributário. No entanto, suspendeu trechos que equiparavam o chamado "risco sacado" a operações de crédito, por entender que extrapolavam os limites legais e criavam fato gerador sem previsão em lei — o que afronta o princípio da legalidade tributária.
A decisão do STF é tecnicamente coerente com a jurisprudência consolidada sobre o IOF, mas politicamente desconcertante. Em vez de avançar na progressividade e na tributação do patrimônio, o país segue preferindo a via fácil da taxação indireta. Enquanto isso, e considerando que essa decisão é apenas um ajuste na decisão liminar anterior e ainda vai ser submetida ao Plenário, o aumento do IOF segue com os gatinhos fofos na caixa de Schrödinger, existe e não existe, num infinito quântico de possibilidades.
Se o leitor ficou confuso, então pode ficar tranquilo. Compreender física quântica e o sistema tributário brasileiro requer uma boa dose de imaginação e desapego da lógica linear tradicional. Tudo pode ser como pode não ser, ao mesmo tempo e em todo lugar.
Fernanda Braga, advogada em direito tributário, empresarial e contencioso. Procuradora do Estado de Pernambuco. Mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, com LL.M em Tributação Internacional pela Universidade da Virgínia.