Dayse de Vasconcelos Mayer: As armadilhas dos Planos de Saúde
Brasil é generoso em entidades encarregadas da fiscalização dos Planos". A ANS (principal), os Procons, as associações de consumidores, o Judiciário

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Conta-se que em Roma, no século I a.C, os generais vitoriosos nas batalhas, a exemplo de Júlio César, ingressavam triunfantes nas cidades acompanhados dos espólios de guerra. Tudo em grandes cortejos que elevavam os conquistadores à condição de Deuses.
Havia o costume de conduzir, de forma discreta, um escravo na parte de trás da quadriga (carruagem puxada por quatro cavalos) com a incumbência de sussurrar ao ouvido do vitorioso: “Lembra-te, és apenas um homem” (Memento, homo, quiapulvis es”).
Troquemos o passado romano pelo passado japonês para conhecer a “Balada de Narayama”, filme dirigido por Shohei Imamura. O longa se passa num pequeno povoado rural do século XIX. Segundo a tradição, ao atingir 70 anos, os moradores da aldeia eram levados ao cume do monte Narayama para aguardar a chegada da Ceifadora. Essa prática tinha o nome de “ubasute”.
Nos dias atuais, a palavra foi substituída pela expressão “carekilling” ou ato sanguinário de exterminar a vida do homem que obteve o prêmio da longevidade.
A história dos generais serve como “leitmotiv” para a focagem das organizações que têm a finalidade de zelar pelo nosso bem-estar: os Planos de Saúde. Acontece que esses planos se revelaram, ao longo do tempo, organizações geradoras de adversidades ou desditas. Infelizmente, os nossos governantes e representantes ignoram tal fato. Talvez por negligência ou esquecimento.
Afinal, os políticos são beneficiários de um tipo de assistência à saúde especial. Nessa hipótese, não estão sujeitos às emboscadas, armadilhas, desditas ou adversidades inerentes aos planos de saúde do homem comum.
No que se prende com a narrativa do Japão, ela oferece a chance de conhecer os desafios ou problemas da longevidade.
Até porque as instituições que deveriam cuidar da promoção de um envelhecimento ativo e garantir uma qualidade de vida mais digna aos idosos, têm feito muito pouco. Tal fato é agravado quando as condições econômicas da família são precárias e existe déficit progressivo na função cognitiva do idoso.
A Folha de São Paulo confirma tais comentários quando noticia que em 2024 o Ministério da Saúde divulgou que 8,5% do estrato com 60 anos, ou mais vive com demência. A projeção para 2050 é de 5,7 milhões de habitantes com esse problema.
Na idade primaveril, fizemos opção pelo Plano de Saúde Bradesco. A escolha significava que o nosso futuro não seria ensombrado e sinistro.
“No início tudo são flores”, depois elas murcham, depois elas secam e, finalmente,elas são deitadas na lixeira por conta do odorasfixiante. Essa é a narrativa da nossa união estável com o plano de saúde que elegi num passado remoto.
A nossa história do Bradesco Saúde principia pelos catálogos recebidos e amealhados durante 30 anos. Eram entregues, anualmente, contendo a relação de médicos, clínicas e laboratórios com respectivos endereços e telefones.
Mensalmente, os boletos de pagamento chegavam pelos correios e eram quitados na sequência. Nesse tempo, a “idade da foice” ficava entre os 50 e 60 anos, mas ninguém era abandonado numa montanha quando caía o último dente.
Como dizia Vinicius de Morais, “de repente, não mais que de repente”...”fez-se da vida uma aventura errante”.
Os boletos passaram a ser eletrônicos e, na sequência, ocorreu maior sofisticação na entrega. O homem desapareceu e o robô ocupou seu espaço.
Essa história foi narrada por Ciaran O’Driscol na poesia “Please Old” – satirizando uma chamada telefônica automatizada. O autor anota a realidade velhaca, sórdida e desumana dos sistemas informáticos. “Ele me pede (o robô) para, gentilmente, permanecer na linha, para, gentilmente, envelhecer...Para, gentilmente desaparecer. O futuro chegou. Por gentileza, permaneça na linha”.
O Brasil é generoso em entidades encarregadas da “fiscalização dos Planos de Saúde. A ANS (principal), os Procons, as associações de consumidores, o Judiciário.
Contudo, nada impede que o beneficiário tente solucionar o problema de forma direta com a operadora. Dificilmente, terá êxito.
Os telefones são atendidos por robôs que repetem a história do poema de Ciaram. As Ouvidorias podem ser acionadas, mas só atendem com repetição do protocolo informado pela operadora.
Quanto aos Procons, são conhecidos pela celeridade no atendimento, mas são despojados de poder, daí a resposta imediata do Bradesco Saúde quando ciente da reclamação: “Após a devida apuração, verificamos que o seu cartão está em conformidade com o padrão estabelecido pela seguradora. Ele está válido para utilização nos atendimentos cobertos pelo seu plano de saúde. Aproveitamos para informar que o cartão digital e a relação de credenciados, estão disponíveis no app e no portal do segurado Bradesco Saúde”.
A carta eletrônica contém uma sequência de vocábulos que sugerem o emprego pelo Bradesco de “conceitos jurídicos indeterminados”: “após a devida apuração”, padrão estabelecido pela operadora”, “válido para utilização nos atendimentos cobertos...”
No tempo em que celebramos contrato com o Bradesco Saúde, ninguém conhecia a expressão “up grade” ou atualização por troca ou acréscimo - jargão utilizado na computação. Durante 30 anos de união estável com a operadora, jamais recebemos “up grade”.
Ao contrário, o plano de saúde reproduziu a indigna situação dos aposentados do Estado e da União deixando sempre o beneficiário no rabo da fila. Por isso, o cartão vermelho do Bradesco, que julgávamos TOP, foi sendo menosprezado pelos médicos e clínicas. A frase é a mesma: “Aceitamos o Bradesco Saúde, mas não aceitamos “esse” (miserável) cartão.
Ou ainda: “a atendente do Bradesco disse que o cartão poderia ser recebido se o contrato fosse alterado. Há poucos dias, uma amiga ofereceu-me uma sugestão: eu deveria arranjar um médico estável para assinar a minha “certidão de óbito” quando eu batesse as botas. A sugestão parece impossível porque o Bradesco Saúde execra a palavra fidelidade. Somos obrigados a viver o encontro casual e a relação aberta.
Enfim, duas auspiciosas notícias:1. a ANS acaba de divulgar novas regras sobre o relacionamento entre operadoras e beneficiários de planos de saúde (Resolução 623/2024). Tudo na tentativa de prevenção de falhas, após o aumento expressivo de reclamações.
A resolução é vista como o “marco” de um novo modelo de fiscalização na saúde suplementar. Vamos ter que traduzir, em primeiro lugar, a palavra marco numa tese de grande complexidade e envergadura. 2. há um escravo na quadriga soprando ao Bradesco que ele não é Deus. Ou será que é?
*Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas