Sérgio C. Buarque: O nó fiscal e a justiça social
A controvérsia entre Executivo e Legislativo expressa algo do conflito distributivo no Brasil, quando evidentes as dificuldades para seguir a meta

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A disputa política em torno da proposta do governo de aumento do IOF-Imposto Sobre Operações Financeiras e outras medidas tributárias deu o sinal para o presidente Lula da Silva retomar o antigo discurso que joga os pobres contra os ricos. O que pode ter dado certo no passado, estimula agora Lula a adotar esta polarização social (pobres contra ricos) na tentativa de recuperar sua imagem desgastada e reverter a perda de popularidade (inclusive entre os pobres). Parece ser também um ensaio para a campanha eleitoral do próximo ano. Lula está correndo riscos eleitorais, na medida em que pode perder parte classe média (que se acha rica), pode provocar tensões políticas e conflitos sociais, mas não há dúvida que a esquerda lulista saiu das cordas, por dizer assim, passando para a ofensiva e definindo a pauta política do Brasil.
Toda a controvérsia entre Executivo e Legislativo expressa algo do conflito distributivo no Brasil quando ficam evidentes as dificuldades do governo para o cumprimento das metas do Arcabouço Fiscal. Para isso, o governo tem duas alternativas, ambas com espaços bem limitados de atuação: redução das despesas primárias ou aumento da receita (ou mesmo uma combinação das duas). O embate decorre do fato de que o governo não querer cortar gastos e o Congresso resistir às medidas que aumentam receitas públicas, caminho preferido pelo governo.
Além desta divergência política, existem fatores técnicos e econômicos que dificultam tanto o corte de gastos, quanto o aumento da receita. A redução das despesas primárias tem que lidar com a enorme rigidez do orçamento, na medida em que cerca de 92% destas despesas são obrigatórias, restando ao Executivo fazer cortes em apenas 8% de todos os recursos orçamentários (chamadas despesas discricionárias), basicamente custeio da máquina pública e investimentos, além das emendas parlamentares que, na verdade, já são quase obrigatórias.
A situação é mais complicada porque parte significativa das despesas obrigatórias tem uma clara tendência de crescimento inercial que, ao longo dos anos, provoca uma compressão da parcela discricionária do orçamento. Só a Previdência Social – item altamente sensível - representa cerca de 34,7% do total das despesas primárias (mais de um trilhão de reais, em 2025), devendo se ampliar no futuro pelo efeito combinado do envelhecimento da população e da elevação real (acima da inflação) dos benefícios, acompanhando o salário-mínimo.
Se o espaço para cortar gastos é muito restrito, e deve diminuir no futuro, o aumento da receita para garantir o equilíbrio fiscal bate numa outra muralha: a elevada carga tributária do Brasil. Estimada em cerca de 33,1% do PIB, a carga tributária brasileira está próxima da Alemanha (36%) e bem acima de outros países emergentes (Coréia do Sul, 28,4%; Chile, 21,1% e México, apenas 16,1% do PIB), alguns deles em situação econômica e social melhor que a brasileira. Se a carga já é alta, a retirada de parcela adicional da renda e da poupança das famílias e das empresas para alimentar os gastos públicos pode ter um impacto negativo no consumo e nos investimentos, sem falar na inadequada taxação do IOF que, como já tem sido destacado, é um imposto regulatório do sistema financeiro e não, arrecadatório. Vale lembrar que, ao contrário do que propaga a campanha de pobres contra ricos, os bancos não perdem nada com este imposto em particular, que apenas eleva o custo do dinheiro que será pago, em última instância, pelos tomadores de empréstimos, empresas ou consumidores.
Quando anuncia medidas para redução da renúncia fiscal (chamada de gastos tributários), o governo está, em última instância, aumentando a receita e, portanto, elevando a carga tributária. O tamanho desta renúncia (entre 600 e 800 bilhões de reais), que foi se formando ao longo dos anos, demanda mesmo uma reestruturação e até eliminação de alguns componentes que caducaram e que não representam mais ganhos para a economia, nem para a sociedade. Em vez de um corte linear de todos os setores beneficiados com a renúncia, o governo deveria fazer uma avaliação rigorosa, definindo cortes duros e suspensão de vários destes incentivos fiscais e financeiros, de preferência com base em um cronograma de redução.
Ao contrário, a proposta do governo que trata do Imposto de Renda Pessoa Física, isenção para quem ganha até cinco mil reais, compensada com taxas sobre rendimentos superiores a 50 mil mensais, promete ser neutra em relação à carga tributária, pretendendo apenas fazer justiça tributária. E, no fundo, por trás de um emaranhado confuso de deduções e taxas adicionais sobre rendimentos acima de 600 mil anuais, a proposta se limita à cobrança de impostos sobre dividendos. Medida correta que, no entanto, deve ser calibrada com o imposto sobre lucro das empresas, como na maioria dos países desenvolvidos.
Estranho, em todo caso, que o governo exclua das novas taxas os brasileiros de classe média alta que recebem altos salários, honorários e outras rendas tributáveis e mesmo os que recebem dividendos num valor inferior a 600 mil por ano. Não se pode falar em justiça tributária com a atual tabela do Imposto de Renda de Pessoa Física que define uma alíquota máxima de 27,5% para todos que ganham acima de R$ 4.664,68, penalizando a classe média pobre, nivelada à elite dos servidores públicos (teto de salário de mais de quarenta e quatro mil). Mais adequado para fazer justiça tributária seria uma revisão ampla da tabela do imposto de renda com mais intervalos e elevando a alíquota máxima para altos rendimentos de salários e honorários. Dito isto, é importante lembrar que, de fato, a justiça social não se realiza na distribuição social dos impostos, se implementa na aplicação da receita total (independente das fontes) em investimentos e políticas que promovam igualdade de oportunidades (educação) e o acesso igualitário aos serviços públicos (principalmente saneamento).
Cada aspecto levantado acima exige um debate e uma análise mais profunda. Mas parece fundamental, no curto prazo, a implementação de medidas para desatar o nó fiscal do Brasil, que pode travar a economia brasileira nos próximos anos. Para isso, ao contrário do incentivo de polarização social, o governo deveria encaminhar a negociação de um acordo nacional em torno da reforma do Estado, que pode combinar alguma elevação da carga tributária com uma reestruturação profunda das despesas primárias, como base para a recuperação da capacidade de investimento público e da retomada do crescimento da economia. Combinação importante para superação do nó fiscal e, assim, a intensificação de um esforço de promoção da justiça social no Brasil, que vai muito além da simples distribuição de renda e assistência social.
Sérgio C. Buarque, economista