Número de deputados na conta do guardanapo
O recente aumento do número de deputados é paradigmático da desfaçatez com que suas excelências parlamentares tratam a população .

A crise na democracia liberal causada pelo crescente hiato de representação tem levado as instituições e o modelo de governança ao descrédito, urbi et orbi. Envoltas nessa névoa de decepção e desconfiança, as populações se tornam mais críticas e menos benevolentes com os poderes executivo, legislativo e judiciário.
No Brasil, em relação ao legislativo, por exemplo, as pesquisas de opinião, que são a caixa de ressonância do pensamento da sociedade, têm sistematicamente conferido notas desabonadoras ao desempenho da Câmara dos Deputados. Com efeito, o agregador de pesquisas PollingData, que consolida dados oriundos de várias pesquisas de opinião, consigna-lhe para o momento atual estimativa de apenas 10% de avaliação positiva (ótimo bom).
Não sem razão. O recente aumento do número de deputados é paradigmático da desfaçatez com que suas excelências parlamentares tratam a população que deveriam representar.
O art. 45, § 1º da Carta Magna estabeleceu que o número total de deputados federais e a representação de cada estado seriam definidos por lei complementar (LC), proporcionalmente à população. A LC 78/93 estabeleceu então que o número de deputados federais dos estados seria proporcional às suas populações, limitando em 513 o total nacional.
Essa proporcionalidade foi definida pela primeira vez para o pleito de 1994 e deveria ser aplicada daí em diante. Passaram-se 31 anos e 7 eleições gerais e por inertia deliberandi do Congresso essa adequação nunca aconteceu, apesar das mudanças populacionais havidas desde então, o que acarretou desproporcionalidades e reclamos das unidades federativas sub representadas.
Com efeito, a Paraíba tem hoje 12 deputados federais e o Amazonas apenas 8, mas suas populações são iguais. O Mato Grosso possui uma população maior do que a do Piauí, mas tem menos parlamentares (8 contra 10), mesmo caso de Santa Catarina e Maranhão (16 contra 18), Paraná com Rio Grande do Sul (30 contra 31), e por aí vai.
Devido a essa reiterada omissão legislativa, o STF designou o TSE para fazer os ajustes pertinentes caso o Congresso continuasse desobedecendo o constituinte originário. Acontece que o ultimatum do STF promoveria alterações de bancadas federais em 14 estados, 7 diminuindo e 7 aumentando, mantido o total de deputados em 513.
Irresignados, os estados com diminuição populacional não queriam perder representação e os estados com crescimento populacional exigiam reparo. O que fazer? A solução dos congressistas foi passar o total de deputados de 513 para 531, agradando todo mundo: estados que iam perder não perdem e estados que iam ganhar, ganham.
Mas isso feito assim a toque de caixa fere o princípio da proporcionalidade. E daí? O próprio relator do projeto de lei disse que "optou por uma abordagem política em vez de cálculo diretamente proporcional previsto na LC 78/93". Essa dita abordagem política gerou, de início, várias distorções.
Por exemplo, Piauí e Rio Grande do Norte têm a mesma população (3,3 milhões), mas hoje o primeiro tem 10 deputados e o segundo tem 8. Pelo decisum corretivo do STF, o Piauí perderia 2 parlamentares e ambos ficariam com 8. Mesma população, mesma bancada, proporcionalidade respeitada.
Mas no jogo ganha-ganha promovido pela Câmara o Piauí não perde nenhum deputado, continua com 10. A distorção permanece (10 contra 8). E agora? Sem problema. A abordagem política deu 2 deputados para o Rio Grande do Norte e os dois estados então ficaram com 10 cada um. Resolvido. Este e outros ajustes foram feitos assim mesmo, na base da conta de guardanapo, reparando assimetrias ali e acolá, tudo à revelia do princípio proporcional. Um acinte.
No Acórdão da decisão do STF sobre o julgamento da ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão) nº 38, que trata da desobediência do Congresso Nacional em adequar as representações parlamentares às populações do estados, está assentado à página 3:
"Ante a circunstância inexorável de que a população de cada unidade federativa se altera ao longo do tempo de forma desigual, instituiu o constituinte originário comando acessório ao legislador complementar, determinando a realização de ajustes periódicos necessários ao restabelecimento da proporcionalidade eventualmente rompida (grifo nosso) ao longo dos quatro anos anteriores".
In casu, o legislador complementar esculpiu norma em bases ofensivas ao art. 45, § 1º da Carta Magna, em completa desarmonia com o princípio da proporcionalidade, abrindo espaço para contestação judicial no STF por se tratar de feito flagrantemente inconstitucional.
Maurício Costa Romão, Ph.D. em economia pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. mauricio-romao@uol.com.br