Quando o Congresso "não está nem aí" para o povo
O que mais preocupa nessa crise de representação é que há uma aposta velada na apatia, na alienação e no cansaço do eleitorado......

O Congresso Nacional vem protagonizando uma sequência de debates legislativos que ecoam dentro de uma bolha distante da realidade do cidadão comum. A votação para aumentar o número de deputados federais de 513 para 531 ilustra esse descompasso. A pesquisa Datafolha, divulgada no dia 17 de junho, revelou que 76?% da população era contrária ao aumento. Apenas 20 % apoiavam a medida, com 2 % sem opinião e 1 % indiferente. Como explicar o silêncio público diante de uma rejeição tão latente?
Essa dissonância entre as pautas discutidas no Legislativo e as demandas da população expõe a total falência do vínculo entre representantes e representados. Em um Brasil marcado por desigualdades estruturais, insegurança alimentar e precarização crescente do trabalho, ampliar o número de parlamentares é, no mínimo, um grande desrespeito. E deixa clara a profunda crise na qualidade da representação política no Brasil.
Enquanto milhões de brasileiros enfrentam desafios concretos como transporte precário, filas no SUS, escolas sucateadas, violência exacerbada, carestia, a maioria dos parlamentares se dedica a pautas corporativistas, simbólicas ou de puro autoatendimento. O aumento do número de deputados não responde a nenhuma necessidade real da sociedade. Pelo contrário, em tempos de aperto fiscal, reforça a percepção pública de que a política serve apenas a si mesma.
Por que a população não se mobiliza? Por que propostas como essa não provocaram indignação generalizada? A resposta está em um fenômeno mais profundo: a anestesia cívica. O desencanto com as instituições representativas, acumulado ao longo do tempo, gerou um ciclo de apatia e desconfiança. A sociedade brasileira, marcada por desigualdade no acesso à informação e à participação política, parece já não esperar absolutamente nada do Congresso e, por isso, não reage.
Isso fragiliza o accountability democrático. A vigilância cidadã se tornou fragmentada, episódica e mediada por narrativas polarizadas, guiadas por algoritmos e não por consciência crítica. Parlamentares que deveriam prestar contas de suas ações se escoram na baixa visibilidade e na confusão informacional para agir de forma opaca, votando leis que os favorecem e blindam privilégios. Esse fenômeno alcança todas as esferas: união, estados e municípios.
A relação entre representados e representantes também mudou. Os canais tradicionais de participação política, como os partidos e associações civis, perderam força. No lugar disso, o que se vê é uma política cada vez mais personalista, volátil e capturada por interesses de curto prazo. As redes sociais, embora ampliem o alcance das vozes individuais, não têm gerado engajamento político efetivo. A indignação digital não se traduz em ação política organizada.
A percepção senso comum é de que as casas legislativas deixaram de ser "a casa do povo" e se transformaram em um grande balcão de negócios. A impressão que fica, a partir do esvaziamento dos debates nesses espaços, é de que houve uma inversão: a agenda dos debates não emana da sociedade e alcança os representantes; os temas pautados vêm do seio da classe política, como um mundo à parte.
Por outro lado, a relação com o Executivo, muitas vezes, passou a funcionar por meio de chantagem explícita. O Legislativo age como um sócio exigente, que raramente se mobiliza, mas exige lucros e benefícios permanentes. Quando pressionados pela opinião pública, os parlamentares até ensaiam um ar de indignação republicana, pressionam os governos, contestam as medidas apresentadas, mas, "na hora H", a orientação do voto segue um conjunto de interesses específicos: manutenção de poder, benefícios e capital político. A consequência é o desencantamento, que se traduz em abstenções eleitorais crescentes, votos nulos e brancos e uma adesão passiva a discursos antipolítica, terreno fértil para o autoritarismo e a desinformação.
Reverter esse quadro exige mais do que reformas institucionais. É preciso investir em educação política crítica, fortalecer os mecanismos de controle social e estimular a participação cidadã contínua, para além das eleições. Orçamentos participativos, conselhos deliberativos locais e assembleias populares podem reconstruir laços entre Estado e sociedade quando levados a sério e não como um mero teatro.
A reforma política é inevitável, mas ela precisa ser feita com o povo, e não contra ele. Alguns caminhos podem estar na redução no número de partidos com representação parlamentar, com vistas a fortalecer uma agenda programática; na reorganização completa dos mecanismos de emendas parlamentares; nos investimentos em maior transparência nos processos legislativos e responsabilização pública dos mandatos parlamentares.
O que mais preocupa nessa crise de representação é que há uma aposta velada na apatia, na alienação e no cansaço do eleitorado. Afinal, o jogo foi desenhado para isso: para fazer parecer que tudo é escolha do povo, quando, na verdade, tudo é arranjo de cúpula. No fim, o cidadão vota, mas não decide. Opina, mas não influi. E paga a conta. Sim, sempre paga a conta.
Priscila Lapa, jornalista e doutora em Ciência Política; Sandro Prado, economista e professor da FCAP-UPE.