Meus livros
Em breve, ninguém saberá mais qual é o sentido amoroso de ter uma biblioteca com milhares de autores a sua disposição para "conversar";

Tentei, mais uma vez, arrumar minha biblioteca, mas cada livro que ponho nas mãos, me traz uma lembrança, revive um autor, me leva a uma página aleatória onde assinalei uma passagem... Pensei em doar parte dela a uma instituição pública, de preferência a UFPE, onde passei boa parte de minha vida, mas acho que ninguém aceita mais livros físicos, sobretudo com as inovações tecnológicas de leitura através de telas e com a possiblidade de guarda-los nas "nuvens", sem ocupação de espaço físico.
As nuvens sempre tiveram, para mim, um efeito encantador: as formas abstratas que assumiam (sobretudo de animais!), as chuvas que delas caíam (quando Papai do Céu lavava a sala!), o lugar para aonde se ia depois da morte, ali onde moravam os Anjos. Havia, inclusive, uma Porta do Céu, com um "porteiro" seletivo e rigoroso! Hoje, naquele meu céu imaginário, podemos acumular livros! Gostaria que este céu, de brancas nuvens, recebesse os meus livros, que há tanto tempo me fazem companhia.
Num de seus deslumbrantes ensaios - Desempacotando minha biblioteca- W. Benjamin trata da figura do colecionador e, em especial, do bibliófilo, o colecionador de livros. Ao desempacotar sua biblioteca - o que Benjamin deve ter feito inúmeras vezes, em função de suas constantes migrações- advém ao ensaísta a lembrança de situações engraçadas e emocionantes proporcionada pelo contato com cada livro que sai da escuridão de sua biblioteca. O ensaio sustenta a tese do colecionador como uma espécie de personagem que retira o livro de circulação, suprime seu valor de troca para atribuir-lhe, não um valor de uso privado, mas para restituir-lhe a dignidade e seu lugar no concerto solitário de outras obras: "O maior fascínio do colecionador é encerrar cada peça num círculo mágico onde ela se fixa quando passa por ela a última excitação - a da compra"!
Esse sentimento antimercantil e despido de um significado puramente econômico de propriedade, Benjamin exemplifica com o fato de numa certa época sua estante conter poucos livros (sua fase "marcial"), cuja presença na sua estante exigia a condição inegociável de que fossem... lidos! Mais tarde, com o acúmulo de obras, ele ultrapassou aquela fase!
Objeto de desejo, de ciúme, de obsessão, de cumplicidade, o livro é, num sentido próprio do termo, uma PRESENÇA. "Os livros, como as prostitutas, se levam para a cama!", dizia Benjamin. Mas não confundamos o manifesto de amor de Benjamin com a expressão de um desejo compulsivo de acumulação. Trata-se de não aceitar uma "cultura" da efemeridade e do fragmento que a leitura digital parece obrigar, com um dedo zapeando pela tela. Seria um despropósito pedir aos nossos alunos que... comprem livros, quando basta "baixá-los", ou melhor, fazer o "download" da obra por um módico preço.
Em breve, ninguém saberá mais qual é o sentido amoroso de ter uma biblioteca com milhares de autores a sua disposição para "conversar"; também não saberemos mais qual é o sentido físico e sensual de abrir as páginas de um livro e penetrar num mundo até então desconhecido, em silêncio, solitário e, ao final, fechá-lo como quem se despede de um amigo e recoloca-o naquela estante em que ele volta à companhia de outros autores. Até que eu precise dele novamente, e sei que ele estará exatamente ali onde eu o deixei! Que fidelidade!
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE