Flávio Brayner: Uma vida entre dois choros
Às vezes, penso que teria tudo para detestar a instituição escolar: ordem, obediência, aprendizado forçado, linguagem específica, adultos chatos...

Tenho a claríssima convicção - agora que minha carreira está chegando ao fim e o pano cairá sobre a cena- de que, se eu não tivesse sido professor desde os 19 anos, eu seria um ser em constante conflito consigo mesmo: tenho a certeza protoreligiosa de ter atendido uma “voccationis”, uma irresistível chamada interior.
Nas duas últimas aulas que ministrei nessa semana que passou, na Universidade Rural e na UFPE, ao me despedir dos alunos daquelas duas instituições, senti meus olhos lavados e enxaguados, como diria o Coronel Odorico Paraguassu. Lembro que a primeira vez que chorei numa sala de aula, eu tinha 3 anos: minha mãe, que me levou para o primeiro dia de Jardim de Infância, não me disse que iria me “abandonar” naquele lugar estranho, com pessoas desconhecidas. Ainda ouço, na memória, o grito que lancei ao vê-la partindo e me deixando naquele terrível lugar: a escola!
Às vezes, penso que teria tudo para detestar a instituição escolar: ordem, obediência, aprendizado forçado, linguagem específica, adultos chatos, crianças encrenqueiras, chefes de disciplina, psicólogos invasivos..., e tenho também a estranha impressão de que nunca saí daquele lugar em que minha mãe me deixou, como se ela nunca tivesse vindo me buscar!
Ali, permaneci um bom tempo como “aluno” (a menor parte) e depois como “professor” (por 50 anos!). Troquei de papel e entendi, bem mais tarde, o que significa sair do espaço protegido e afetual da família para um espaço que nos prepara para enfrentar a impessoalidade do mundo e suas instituições. Mas também acho que nesse longuíssimo intervalo que me separa de meu primeiro choro e meu último -em meus cursos de doutorado em educação-, eu percebo o que minha mãe queria dizer e fazer quando “soltou a minha mão” (emancipare, em latim), para que eu pudesse fazer meu próprio caminho. O sentimento de abandono inicial foi substituído pelo carinho, acolhimento e respeito que recebi, ao longo da profissão, e que marca aquele “choro final”!
Eu também entendi, nesse longo percurso, que eu era portador de um tipo de responsabilidade que ia muito além daquela que meus pais assumiram ao me colocar no Mundo: ao “ESTAR” no Mundo, eu precisava, agora, apresentá-lo a quem estava chegando nele, mesmo que minha visão imperfeita, minha miopia, meus antolhos, minha cultura, minha história... limitassem minha compreensão do mundo. Mas precisava fazê-lo! Eis o sentido, para mim, daquele “chamado interior”!
Quando vejo, ao lado de minha casa, as crianças do Instituto Capibaribe entrarem por aquela porta lateral da Rua das Pernambucanas, alegres e destemidas, sem nem se voltarem para seus pais para um rápido adeusinho, e ver seus pais meio... decepcionados, tenho a sensação de viver num mundo invertido: são os pais os “abandonados”, os “desamparados” pelos filhos que atravessam aquela porta tão seguros e confiantes. Espero que essas crianças ouçam também seus “chamados interiores”, como eu ouvi, e que nos seus últimos dias de trabalho, elas sintam que a “separação” do início termina no “acolhimento” do final! Quando choramos agradecidos...
Vai, aqui, uma piscadela d’olhos ao jovem professor que fui, e dedico esse artigo a todos os alunos e alunas de todas as épocas e escolas por onde passei.
Flávio Brayner é Professor