Opinião | Artigo

Priscila Lapa e Sandro Prado: Entre a fé e o voto, o novo mapa religioso do Brasil

Ainda que a Igreja Católica Apostólica Romana mantenha a liderança religiosa nacional, a velocidade do seu declínio indica uma transição em curso

Por PRISCILA LAPA, Sandro Prado Publicado em 15/06/2025 às 18:51

A publicação dos dados preliminares do Censo Demográfico 2022 pelo IBGE confirma o que a política e o mercado já vinham percebendo empiricamente: o Brasil vive uma inflexão religiosa que reconfigura padrões de comportamento, consumo e decisão eleitoral. A religião tornou-se um dos eixos centrais para entender a cultura política e econômica do país.

O crescimento evangélico e o declínio católico

O crescimento dos evangélicos, que passaram de 21,6% da população em 2010 para 26,9% em 2022 (47,4 milhões de brasileiros), contrasta com a queda acentuada dos católicos, cuja participação caiu de 65,1% para 56,7% no mesmo período.

Ainda que a Igreja Católica Apostólica Romana mantenha a liderança religiosa nacional, a velocidade do seu declínio — sobretudo entre os jovens — indica uma transição em curso, com consequências políticas e mercadológicas.

Os dados mostram que 31,6% dos jovens entre 10 e 14 anos já se identificam como evangélicos, frente a apenas 52% de católicos nessa mesma faixa. Não se trata apenas de uma substituição geracional de fé, mas da emergência de um ethos coletivo construído em redes de sociabilidade, presentes nas igrejas, nos grupos de WhatsApp e no comércio religioso. Essa base tem potencial de mobilização eleitoral, fidelização de consumo e orientação de valores.

A influência da fé na Política e no comportamento eleitoral

O pertencimento a igrejas evangélicas favorece uma cosmovisão moral conservadora e de lealdade institucional. É nesse campo que a "Bancada da Bíblia" se expande, capturando igrejas como espaços de mediação entre fiéis e o Estado. Se Lutero desafiou Roma com 95 teses, no parlamento brasileiro se negocia o Orçamento com o mesmo fervor com que se celebra o dízimo.

A conversão em massa não é apenas espiritual. Em muitas regiões do país, o avanço das denominações evangélicas — sobretudo as neopentecostais — caminha lado a lado com estratégias articuladas de cooptação política. Segundo estudos da USP, há atualmente mais de 150 mil templos evangélicos registrados na Receita Federal, uma capilaridade que nenhum partido político jamais conseguiu replicar.

Em Pernambuco, o crescimento das igrejas evangélicas coincide com o enraizamento de vereadores, deputados estaduais e federais com vínculos confessionais explícitos. Em diversos estados, já se pode falar numa “geografia da fé” que orienta o comportamento eleitoral, com forte alinhamento a pautas da extrema-direita — antiaborto, armamentismo e a cruzada contra a ideologia de gênero — e a partidos e federações como o PL, Republicanos e a União Progressista têm conseguido, com eficiência, transformar a fé em capital político, e o altar, em palanque.

O desafio do catolicismo e a renovação da igreja

O catolicismo, ainda que majoritário, enfrenta um declínio constante. A maior concentração de católicos está aqui no Nordeste (63,9%) e no Sul (62,4%), mas mesmo essas regiões já sentem os efeitos da transição religiosa. A Igreja, historicamente associada à elite política e ao conservadorismo, tentou uma inflexão nos últimos anos com o Papa Francisco, buscando recuperar prestígio entre os jovens, os pobres, os excluídos e as pautas humanitárias e progressistas que marcaram o seu pontificado.

Contudo, as reformas propostas por Francisco — como a abertura ao diálogo inter-religioso, a flexibilização de temas como a homossexualidade e o papel da mulher na Igreja — enfrentaram uma dura resistência interna, sobretudo da ala conservadora europeia e latino-americana. O papado de Leão XIV será determinante para definir se a Igreja Católica aprofundará o giro progressista iniciado por Francisco ou se promoverá um retorno à ortodoxia, determinando o rumo de uma Igreja que busca redefinir sua relevância no século XXI.

O clero católico enfrenta dificuldades em se renovar: a linguagem litúrgica, a centralização do poder e a perda de contato com as comunidades criam barreiras à reconexão com os fiéis mais jovens e periféricos. Soma-se a isso a queda acentuada no número de jovens que buscam o sacerdócio — uma retração sintomática de um modelo religioso que já não seduz como antes.

Religião e economia: Um retrato das classes sociais

Do ponto de vista econômico, os dados do Censo revelam que a adesão religiosa se conecta com a estrutura de classe. Os espíritas são os mais escolarizados (48% com ensino superior completo) e com menor taxa de analfabetismo (1%), o que reflete seu vínculo com as classes médias urbanas. Já os católicos e evangélicos se concentram em grupos de menor escolaridade.

Os evangélicos são um ecossistema de consumo articulado em torno de valores compartilhados e lideranças carismáticas. Pastores, cantores gospel e influenciadores digitais não apenas pregam, mas indicam produtos, serviços, comportamentos e até candidatos. O “consumo evangélico” conecta fé e estética, mobilizando pessoas em torno de um mesmo repertório simbólico.

A ampliação do grupo “sem religião” (9,3% da população) acompanha uma tendência global de secularização, mas no Brasil ela se dá com características próprias. Diferentemente do que ocorre na Europa, esse grupo não adere, em larga escala, a valores progressistas ou partidos de esquerda. Como grupo político, ainda é fragmentado demais para atuar de forma coesa, mas sua expansão é digna de atenção.

O futuro da fé e do voto no Brasil

Mais que um censo, o IBGE fez um mapa de poder, tensionado pelas disputas que emergem da fé. O comportamento de consumo, a definição de políticas públicas, o alinhamento ideológico e o próprio debate sobre o Novo Código Civil estão cada vez mais imbricados com as novas geografias da religião. No Brasil, Deus está em tudo. Está nas urnas, nos algoritmos, nas transmissões ao vivo dos cultos, nas pautas legislativas, nas compras online e nas famílias em crise.

Entender esse novo ecossistema religioso não é tarefa apenas para sociólogos ou teólogos. É um imperativo para cientistas políticos, economistas, analistas de mercado e para quem quer compreender o Brasil que emerge das cinzas do bolsonarismo e da Nova República.

Esse novo mapa religioso desafia tanto o Estado laico quanto os partidos políticos tradicionais. E antecipa que as eleições – como já foi em 2018 e 2022 – serão, mais uma vez, disputadas também no púlpito. O Brasil que se desenha não é apenas um país que reza: é um país que vota de olhos fechados e ouvidos atentos à voz do pastor que, por vezes, é também o seu próprio chacal.

*Priscila Lapa, jornalista e doutora em Ciência Política; Sandro Prado, economista e professor da FCAP-UPE

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