Como a palavra molda o pensamento e se torna instrumento de mudança e expressão humana
A palavra há de ter claridade, não ser contida na mera percepção do "mundo vasto mundo" drumoniano, uma palavra que conduz e fertiliza

A palavra, unidade da linguagem, tem um conceito. O termo, de origem grega, tomado pelo latim, que gerou parábola, serve ao pensamento e à criação. Sob a pele da palavra há cifras e códigos.
E na redução do pensamento à palavra, o homem, que pensa, quer escrever palavras definitivas, como que o “lavrador embaraçado por ter que transformar o crescimento do trigo em algarismos”, segundo flagrou Clarice Lispector, na proposta de quem escreve o sentido do seu pensar.
O poder transformador da palavra na construção do pensamento
No rabiscar palavras, a sua concreção se apodera da realidade do pensamento, diante da imensa responsabilidade de a potência da mais simples palavra, alcançar, com fidelidade, todos os significados pensantes.
Em verdade, “o sentido está preso na palavra, e a palavra é a existência exterior do sentido” (Maurice Merleau-Ponty, in 'Fenomenologia da Percepção).
A palavra há de ter claridade, não ser contida na percepção do “mundo vasto mundo” drumoniano, uma palavra que conduz e fertiliza. Uma palavra viva, que por sua essencial natureza deve conviver, em harmonia, com o intelecto. Na visão de Samuel Beckett, “é o fim que confere o significado às palavras”.
Mas, se a palavra deve ter consigo o grande teor da verdade, do pensamento e do ser cognoscente, em si mesmo; um primeiro ponto de inflexão será admitir que a palavra não deva condicionar o pensamento e o entendimento.
Reflexões filosóficas sobre linguagem e comunicação
A maior visibilidade da palavra é o descortino inexorável de quem pensa e de quem a coloca no pergaminho ou na voz dos que clamam. Esse é o problema da comunicação, detectado por Arthur Schinitzler, na sua obra “Relações e Solidão”, sublinhando a reflexão seguinte: “As nossas palavras giram em torno das nossas ideias porque não somos capazes de exprimir plenamente um pensamento por palavras, caso contrário o entendimento - pelo menos entre pessoas inteligentes - há muito estaria estabelecido. Mas os nossos pensamentos giram também em torno das nossas palavras, e é isso que é mais grave. Se tivéssemos a força, a coragem ou a possibilidade de pensar totalmente fora das palavras, estaríamos mais avançados do que o estamos agora.”
De fato. A tradução do pensamento pela palavra tem sido problematizada por Johann Wolfgang von Goethe, ao asseverar que: “cabe-nos a tarefa irrecusável, seriíssima, dia a dia renovada, de - com a máxima imediaticidade e adequação possíveis - fazer coincidir a palavra com a coisa sentida, contemplada, pensada, experimentada, imaginada ou produzida pela razão. Que cada um tente fazê-lo. Verificará que é muito mais difícil do que se costuma pensar. Porque para os homens, infelizmente, as palavras são de um modo geral toscos substitutos. Na maior parte das vezes o homem pensa ou sabe melhor do que aquilo que exprime.”
Desafios do escritor: traduzir o pensamento em palavras
Esse, o maior desafio do escritor (ou do falante), tal qual o do escultor que cinzela a sua obra, buscando o prazer estético que seu pensamento produz; tal qual o do pintor que arrebanha cores e formas densificadas na sua alma criadora; do mesmo modo que o músico quer dominar o instrumento segundo a distinção de qualquer nota, em uma nova sonoridade musical.
A palavra, então, há de ser dita, segundo a natureza das coisas. Refletiu William Shakespeare o que chamamos rosa, mesmo com outro nome, teria o mesmo aroma. A palavra deverá ser exata e nela o homem não está só, está inteiro.
“Levam as frases sentido que uma cadência lhes dá: sentido do não-vivido a que fica reduzido o que, escolhido, não há” (...) “Levam as frases sentido que uma cadência lhes dá. É justo, injusto - o escolhido? Como quereis que, vivido, ele não seja o que será? (“Exactidão”. de Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum').
A palavra como luz e energia na expressão humana
A palavra é, sobretudo, luz construída, “corrente magnética cheia de vida” e nela o homem é sua energia. Como advertiu Madre Teresa de Calcutá: “Todas as nossas palavras serão inúteis se não brotarem do fundo do coração. As palavras que não dão luz aumentam a escuridão.”
Tome-se, pois, a palavra, na sua mobilidade e na fluidez que a envolve na verbalização do pensamento e dos significados mais verticais.
A palavra é sentimento, no dizer poético de Carlos Drummond de Andrade (“A Palavra” na sua obra “A Paixão Medida”): “Já não quero dicionários consultados em vão. Quero só a palavra que nunca estará neles nem se pode inventar. Que resumiria o mundo e o substituiria. Mais sol do que o sol, dentro da qual vivêssemos todos em comunhão, mudos, saboreando-a.”
O Dhammapada, uma das escrituras do budismo, ensina: “Tudo o que somos hoje é resultado do que temos pensado. O que pensamos hoje é o que seremos amanhã: nossa vida é uma criação da nossa mente.”
Na chamada “crise da razão”, ante a contemporaneidade, que não mais acredita em “valores universais, utopias transcendentes e finalidades redentoras”, onde muitos intelectuais estão em silêncio, a ética aniquilada, e o pensamento confuso, a tarefa da palavra haverá de buscar novos saberes, como expressão de potência de um mundo a ser reconstruído, em disposição existencial.
Assim, o escritor como filósofo e melhor intérprete da vida, em sua função fundamental de atividade criadora, e todos nós, também responsáveis por uma humanidade mais justa, deveremos, atentamente, exercitar. A palavra como instrumento de clamor e de coragem.
*Jones Figueirêdo Alves, desembargador Emérito do TJPE. Advogado e parecerista