Corpus Iuris Antirracista: o Direito precisa de novos corpos e novos códigos
Falar em um Corpus Iuris Antirracista é propor um novo pacto para o Direito. Não basta mais refletir. É tempo de agir. É tempo de rever práticas.....

O universo jurídico brasileiro tem buscado se reinventar. Tribunais, Ministério Público e a própria Ordem dos Advogados do Brasil vêm adotando iniciativas comprometidas com a equidade racial. Protocolos para julgamentos com perspectiva de raça, cotas em concursos da magistratura, grupos de trabalho voltados ao enfrentamento do racismo institucional e formações antirracistas são exemplos dessa movimentação. A OAB, ao reconhecer Esperança Garcia — mulher negra e escravizada — como a primeira advogada do país, também sinaliza um gesto de reparação histórica.
Mas essa transformação precisa alcançar a academia, onde o Direito é gestado. As instituições de ensino superior moldam não apenas a técnica, mas os imaginários jurídicos. Enegrecer a academia não é um adereço simbólico, é ação estruturante para um sistema jurídico mais justo e plural.
Pessoas negras seguem sendo exceção entre os corpos docentes dos cursos de Direito. Enfrentam o desafio da solidão institucional, da necessidade de constante afirmação e da resistência às suas abordagens. A sobrecarga emocional, intelectual e simbólica recai de forma desproporcional sobre quem rompe as barreiras do racismo acadêmico.
Para discentes de pele negra, o percurso também é árduo. Acesso dificultado, muitas vezes viabilizado pelas políticas afirmativas, barreiras para permanência, ausência de referências docentes racialmente próximas, currículos que ignoram produções negras e violências cotidianas compõem a experiência de muitas pessoas. Como alertou Abdias do Nascimento, “a estrutura da sociedade brasileira está assentada sobre o racismo institucional” — e isso inclui os alicerces do ensino jurídico.
É urgente reconstruir o Corpus Iuris com base na justiça racial. Currículos que não contemplam obras de autoria negra e práticas pedagógicas que invisibilizam trajetórias de pessoas negras apenas reforçam desigualdades.
Enegrecer a academia exige mais do que discursos. É preciso repensar os processos seletivos, os critérios de progressão na carreira docente, os conteúdos programáticos e as metodologias de ensino. É necessário fomentar grupos de pesquisa racializados, incentivar a produção acadêmica com centralidade na questão racial, apoiar financeiramente pesquisas desenvolvidas por pessoas negras, criar editais específicos e garantir políticas de permanência robustas. Também é fundamental implementar ações institucionais antirracistas, transversalizar o debate racial nos cursos e consolidar espaços de escuta e acolhimento para a construção de ambientes verdadeiramente inclusivos.
Falar em um Corpus Iuris Antirracista é propor um novo pacto para o Direito. Não basta mais refletir. É tempo de agir. É tempo de rever práticas, corrigir desigualdades, assumir compromissos institucionais e transformar estruturas. Como nos ensinou Angela Davis, “em uma sociedade racista, não basta não ser racista — é preciso ser antirracista”. A academia não pode mais se omitir. A construção de um Direito mais justo começa com a coragem de fazer diferente — e de fazer agora.
Manoela Alves , diretora do Instituto Enegrecer e professora universitária
Déborah Callender, estudante do curso de Direito