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Bets 'consomem' 27% do Bolsa Família pago a lares com apostadores; levantamento do TCU indica possibilidade de fraudes

Estudo concluiu existir risco de que contas de famílias atendidas pelo Bolsa Família estejam sendo utilizadas para fraudes com apostas

Por Estadão Conteúdo Publicado em 07/11/2025 às 10:38

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Um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que integrantes de famílias com algum beneficiário do Bolsa Família transferiram R$ 3,7 bilhões para casas de apostas, em janeiro de 2025. O montante corresponde a 27% dos R$ 13,7 bilhões distribuídos pelo programa no primeiro mês deste ano.

Esse envio bilionário foi realizado por 4,4 milhões das 20,3 milhões de famílias atendidas em janeiro. Ou seja, 21,8% das famílias no programa social tiveram algum contato com apostas online. Uma parte delas está criticamente endividada.

O levantamento considera apenas sites de casas de apostas autorizadas. A associação que representa as bets foi procurada e o espaço segue aberto para manifestação.

Suspeita de fraudes

O estudo do TCU, entretanto, concluiu existir "elevado risco" de que contas de famílias atendidas pelo Bolsa Família estejam sendo utilizadas para fraudes com apostas e outras práticas ilegais. Por isso, o próprio tribunal faz ressalvas sobre as descobertas em relatório técnico.

A suspeita gira em torno do fato de que 20% do universo de famílias que colocaram dinheiro em bets foram responsáveis por cerca de 80% das transferências para sites de apostas. Além disso, houve transferências incompatíveis com a renda desse grupo, de até R$ 2 milhões em um mês.

Das 4,4 milhões de famílias de beneficiários que gastaram com sites de apostas em janeiro, 889 mil enviaram R$ 2,9 bilhões, o que corresponde a 78% de todo o valor gasto com apostas pelos grupos familiares no Bolsa Família.

Essas famílias que concentraram os pagamentos maiores para apostas correspondem a 20% das 4,4 milhões que tiveram algum integrante apostador.

O estudo feito pelo TCU também fez uma análise sobre os valores usados em sites de apostas e os comparou com a renda das famílias e com os R$ 671,91 pagos de Bolsa Família, em média, em janeiro deste ano.

Das 4,4 milhões de famílias de beneficiários que tiveram algum apostador, 3,2 milhões transferiram até R$ 600 para as bets. Outras 371,7 mil usaram até R$ 1 mil, e 820,2 mil mais de R$ 1 mil.

Além disso, uma única família transferiu R$ 2,1 milhões para bets no mês e 663 famílias foram responsáveis por apostas que variam de R$ 100 mil a R$ 1,4 milhão.

"Esses valores não estão de acordo nem com a realidade nem dos beneficiários do Bolsa Família e nem com grande parcela da população brasileira. Essa situação alerta para a possibilidade da utilização indevida de CPFs de beneficiários do programa para não somente as apostas em plataformas online como para outras fraudes e práticas ilegais", diz o relatório.

O Estadão já mostrou que esquemas de apostas, desde o início do processo de regularização do jogo, utilizavam beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família para abrir bets ilegais e para operar pagamentos fraudulentos.

Endividamento das famílias

O relatório do TCU apresentou dados sobre o impacto das apostas no endividamento das famílias que recebem o Bolsa Família. O levantamento considerou os valores gastos com apostas, o benefício recebido, a soma de outras fontes de renda como salários e, ainda, os valores que possivelmente foram arrecadados com premiações pagas pelas bets.

A conclusão foi a de que 2.818 famílias estão em "situação crítica" e de "alto risco social". Há ainda outras 23.397 famílias em "início de endividamento" e 774.678 com "comprometimento das necessidades básicas".

Esses três perfis de endividamento somam mais de 800,8 mil que estão no Bolsa Família, têm algum jogador no seio familiar e enfrentam problemas financeiros relevantes. As classificações são baseadas em referências internacionais.

Novamente, o estudo relativiza as descobertas ao apontar que "parte das famílias relacionadas à essas situações realizaram transferências de altíssimo valor, incompatíveis com a renda de beneficiários do Programa Bolsa Família".

Ainda recorte sobre endividamento, a maioria das famílias beneficiárias que tiveram contato com apostas, 3.645.162, o equivalente 81,97% das 4,4 milhões que de alguma forma jogaram em janeiro, comprometeram menos de 2% da renda.

Segundo as referências usadas no estudo, esse percentual reflete riscos baixos ou médios, "não impactando de forma efetiva na segurança financeira dessas famílias".

O levantamento feito pela área técnica do TCU usou dados de apostas feitas em janeiro de 2025 e cruzou com as bases de atendidos pelo Bolsa Família em dezembro de 2023.

Antes, houve uma nota técnica elaborada pelo Banco Central, divulgada no fim de 2024, que indicou que beneficiários do Bolsa Família repassaram R$ 3 bilhões via Pix para empresas de apostas. A metodologia foi amplamente questionada.

O estudo do TCU se debruçou sobre o trabalho do Banco Central e fez observações negativas. O relatório frisou que a própria Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), do Ministério da Fazenda, ponderou durante o levantamento que aquela nota técnica não deveria ser usada como base para orientação de políticas públicas.

A análise da Corte de Contas foi feita no âmbito de um processo aberto no TCU em outubro de 2024 pelo ministro Bruno Dantas e que ganhou a relatoria do ministro Jhonatan de Jesus.

"(As bets) se transformaram em verdadeiro 'cassino de bolso' acessível a milhões de brasileiros. Esse fenômeno tem agravado o endividamento familiar, com impactos significativos na saúde e na estabilidade social, especialmente entre os grupos mais vulneráveis", frisou o relator.

Para De Jesus, o estudo do tribunal expõe cenário que merece atenção imediata, sobretudo com relação ao risco social crítico para parcela de beneficiários endividados e à suspeita de fraudes e uso indevido de CPFs.

"A constatação de que centenas de milhares de famílias vulneráveis já se encontram em risco crítico, somada aos fortes indícios de fraudes milionárias, demonstra que o impacto das apostas no Programa Bolsa Família é problema real e multifacetado", destacou.

Fazenda estende prazo para bets barrarem quem recebe Bolsa Família

O Ministério da Fazenda, por meio da sua Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), decidiu, na última semana, estender por mais 30 dias o prazo para que as empresas de apostas se adequem à regra que as obriga de barrar cadastros de quem recebe o Bolsa Família e o Benefício da Prestação Continuada (BPC).

As regras, publicadas em 1º de outubro, começariam a valer em 30 dias, mas representantes das bets protestaram que o prazo não era suficiente para a adequação de sistemas. A proibição imposta pela Fazenda foi adotada como forma de cumprir decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

A Suprema Corte ordenou que o governo adotasse medidas para vetar o uso de recursos de programas assistenciais em apostas online.

Com o adiamento, é possível que beneficiários estejam acessando sites de apostas. A proibição deve ter pouco impacto no universo de apostadores porque titulares do benefício costumam ser as mulheres das famílias e pesquisas apontam que os homens são maioria entre os jogadores.

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