O menino que cresceu sonhando com a farda
Aos 20 anos, Kauã Felipe tenta uma vaga nas Forças Armadas. A história dele reflete a busca de muitos jovens por estabilidade, status e pertencimento

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A foto ainda está no quarto de Kauã Felipe, no bairro de Santo Aleixo, em Jaboatão dos Guararapes. Ele aparece criança, o semblante sério, vestindo a farda do Exército. Na época, era comum fotógrafos visitarem escolas oferecendo retratos das crianças com roupas de profissões — médico, bombeiro, policial. "Por incrível que pareça, tenho essa foto até hoje no meu quarto. E só depois de grande é que isso fez sentido na minha vida", conta.
Hoje, aos 20 anos, ele tenta vestir a farda de verdade. Há três anos, dedica os dias — e muitas noites — a estudar para os concursos das Forças Armadas. "Agora estou aguardando os resultados", diz. "A gente vai de janeiro até setembro ou outubro. Normalmente, a prova é em setembro".
Do futebol à rotina de estudos
Antes de sonhar com a vida militar, Kauã quis ser jogador de futebol. Passou pelas bases do Sport, do Náutico e de clubes no Paraná e no Rio de Janeiro. “Joguei fora também. Tive lesões. Quebrei o tornozelo e depois rompi o ligamento do joelho". As contusões mudaram o rumo. "Com 17 anos, decidi parar. Conversei com meu pai e disse que queria fazer outra coisa da vida".
A escolha pela carreira militar veio pouco depois. "Na minha família, meus primos e meu padrinho são todos militares. Era uma carreira com a qual eu me identificava, porque envolve a parte física, que eu já era acostumado a fazer".
As mudanças de cidade e a pandemia comprometeram os estudos, mas o desejo de recomeçar persistiu. "Meu ensino médio foi debilitado. Pedi para fazer o EJA, terminei em seis meses e comecei a estudar para concurso".
Estabilidade e chance de mudar de vida
Kauã fala com clareza sobre o que o atrai na vida militar. A estabilidade e a possibilidade de ajudar os pais. "Meu pai e minha mãe sempre foram trabalhadores. A gente nunca passou fome, mas também nunca teve luxo. Um dos meus desejos ao entrar para a carreira militar é poder dar uma condição melhor para eles".
O pai é motorista de Fiorino; a mãe, técnica de enfermagem. O cursinho preparatório — o JB Curso — só foi possível com o esforço dos dois. "Foi dividido entre meu pai e minha mãe. Graças a Deus, conseguimos pagar. Valeu muito a pena, porque o curso é realmente bom".
Ele reconhece que, no Brasil de oportunidades desiguais, o concurso público ainda é o caminho mais sólido. "Eu comecei a perceber que você passava cinco anos se formando (na universidade) e, quando terminava, ficava dependendo do mercado de trabalho. A estabilidade da carreira militar também contou muito".
Nos últimos dois anos, o esforço já começou a aparecer nos resultados. "Tive minha primeira aprovação na EAM, a Escola de Aprendizes de Marinheiro. Depois fui aprovado de novo na EAM, aprovado em Física na Rural e também na EA, a Escola de Especialistas da Aeronáutica. Agora estou na expectativa dos resultados da SpaceX e da ESA".
Mesmo com o foco na vida militar, Kauã pensa em outras possibilidades de ascensão — uma característica que confirma o que os pesquisadores chamam de ‘farda como trampolim’. "Se eu não fosse seguir a carreira militar, eu iria para a área da saúde. Fui aprovado também na São Miguel, em Odontologia. Mais pra frente, penso em fazer curso para auditor fiscal, que também é uma carreira estável e com bom salário".
A disciplina que vem de casa
A rotina é puxada e quase militar antes mesmo da farda. "Eu estudava das 7h às 12h20 no curso. Quando chegava em casa, descansava um pouco e voltava a estudar até umas 22h30. Acordava às 4h30.” Para evitar ônibus e metrô, pegava carona com o pai. “Saía de casa às 5h, chegava no curso às 5h30 e ficava de pé esperando na frente até abrirem, às 6h. É uma luta. Quem pensa que é fácil, não imagina o tanto de história por trás".
O ritmo intenso exigiu abrir mão de outras coisas. "Desinstalei o Instagram, passei um ano sem, parei de sair com amigos e tive que filtrar minhas atitudes. Durante a semana, eu estudava; e, no fim de semana, revisava o conteúdo".
A disciplina vem de casa. "Meu pai sempre foi muito organizado. Aqui sempre foi acordar cedo, correr atrás das coisas, dormir cedo. Acho bonito o jeito da vida militar — essa exigência de acordar cedo, dormir cedo, dar o máximo de si".
Fé, valores e pertencimento
Católico, Kauã se define como um jovem de perfil conservador. “Eu sou mais à direita", classifica-se. A escolha pela farda, para ele, é mais do que um emprego, é um modo de vida. "O futebol também tem isso: regras, disciplina, trabalho em equipe. Eu morava em alojamento, tinha hora para acordar, para dormir, para usar o celular, para se alimentar. Isso me ensinou a lidar com pressão, e no mundo militar também tem pressão. É parecido".
O professor e o espelho
Do outro lado da sala de aula, o ex-oficial do Exército Jaildo Bezerra, 57 anos, reconhece o brilho nos olhos desses meninos. Fundador do JB Curso, Jaildo também viu sua vida mudar por meio da farda. "Vim de uma comunidade muito pobre, morava em uma casa de taipa, de barro e palha, com chão de areia. Fiz o concurso, estudei sozinho, me dediquei e passei de primeira".
Quando recebeu sua primeira transferência, construiu a casa do pai. "Foi algo maravilhoso. Consegui dar à minha família um upgrade que talvez eu jamais tivesse conquistado se não tivesse entrado para a carreira militar".
Hoje, depois de três décadas de serviço e 11 anos à frente do cursinho, ele coleciona histórias de superação. Uma delas, a de um aluno que estudou enquanto a família catava latinhas para pagar as mensalidades. “No dia da despedida, a mãe dele me abraçou e disse: ‘Professor, nós catávamos latinha para pagar o curso.’ Eu não sabia disso. Era uma família muito humilde. Hoje o filho está na academia e vai mudar completamente a vida da família.”
Jaildo também conta o caso de dois irmãos do Ibura — um se tornou o melhor aluno da turma e depois o primeiro da academia. “Ser o primeiro da academia é algo quase sobre-humano”, diz, com orgulho.
A partir da experiência de quem viveu dentro e fora da caserna, ele entende o que move jovens como Kauã. "Os jovens procuram a carreira militar por vários motivos. Há o ideal pessoal, aquele desejo de servir ao país, mas também a questão da segurança profissional. A carreira militar oferece estabilidade. Não é como um emprego comum, em que, se o patrão não gostar, manda embora".
Além da estabilidade, Jaildo cita as vantagens que tornam a farda um atrativo: "Quando você termina a academia, começa ganhando um salário inicial que não é fácil de alcançar na iniciativa privada. Tem plano de saúde, escolas militares para os filhos e aposentadoria integral. Você se aposenta com o mesmo salário que recebia na ativa. Isso é raro".
Um futuro em construção
Kauã aguarda o resultado dos concursos da ESA (Escola de Sargentos das Armas) e da EsPCEx (Escola Preparatória de Cadetes do Exército). Já tem aprovações parciais e o reconhecimento do professor. "Ele é muito disciplinado. É o tipo de aluno que inspira os outros", resume Jaildo.
Se for aprovado, o jovem deverá se mudar para Minas Gerais ou São Paulo. Está preparado para isso. “Estou disposto a ir embora e deixar minha cidade”, diz, com naturalidade.
No quarto, entre apostilas e cadernos rabiscados, a foto antiga continua ali. O menino que um dia vestiu a farda por um retrato agora estuda para merecê-la de verdade.