Perna Cabeluda: Por que a lenda de 'O Agente Secreto' fala mais sobre a ditadura do que se imagina
Criatura que aterrorizou o Recife nos anos 1970 ressurge no cinema de Kleber Mendonça como metáfora da repressão: 'A lenda urbana é a fábula perfeita'
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Lenda conhecida do imaginário pernambucano, a Perna Cabeluda voltou ao centro das conversas (agora em escala nacional e até internacional) por causa do filme "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho, que estreou nos cinemas na última quinta-feira (6/11).
No longa, há uma cena baseada em uma notícia jornalística, em que a perna ataca pessoas que praticam atos sexuais no Parque 13 de Maio, no Centro do Recife.
Para alguns, o trecho de realismo fantástico pode ter soado deslocado em um filme que, em sua sinopse, trata da ditadura militar. No entanto, a lenda surgiu justamente nesse período.
'Metáfora da repressão'
A perna apareceu de fato no noticiário em 1975, dois anos antes da ambientação do filme. Diz-se que, na época, a censura cortava reportagens e, muitas vezes, jornalistas inventavam histórias absurdas às pressas — o célebre caso do "bebê-diabo", do ABC Paulista, também surgiu naquele mesmo ano.
Nos boatos que circularam na época, a aparição costumava ocorrer à noite, nas zonas boêmias, funcionando quase como uma ferramenta moralizadora contra quem se aventurava pelas ruas. "O Agente Secreto" recupera bem esse sentido simbólico.
O entendimento foi compartilhado até por críticos estrangeiros, como Pete Hammond, do "Deadline":
"A história da 'perna peluda' ganha vida própria, chegando a incluir uma sequência de fantasia em que ataca homens envolvidos em atividades sexuais gays em um parque — algo que serve como metáfora para a polícia e a repressão das autoridades", escreveu após a sessão em Cannes.
'Lenda é absurda, mas tem pés no chão', diz diretor
Durante as entrevistas de pré-estreia, Kleber Mendonça Filho brincou diversas vezes que "não tem perna cabeluda no filme", tentando preservar a surpresa para o público pernambucano. "Ingenuamente, achei que ninguém ia falar disso", disse ao JC.
O cineasta sempre foi fascinado por lendas urbanas, tema que também inspira seus curtas "Vinil Verde" (2004) e "A Menina e o Algodão" (2003).
"A lenda urbana é a fábula perfeita, porque é absurda e, ao mesmo tempo, tem os pés muito no chão. Acho que por isso me senti atraído por fazer quase uma 'origin story' da Perna Cabeluda", contou.
"Eu tinha mais ou menos a idade dos meus filhos quando a lenda surgiu, no fim dos anos 1970. Minha mãe leu para mim a história no Diario de Pernambuco. Saiu como reportagem mesmo — não era no suplemento literário. Nunca esqueci aquilo. Virou uma lenda muito lembrada no Recife, e encontrei uma maneira de fazê-la funcionar dentro do filme. Gosto muito da sequência."
O surgimento da lenda
A origem da Perna Cabeluda é tema de disputa em Pernambuco. Há quem diga que o renomado romancista Raimundo Carrero foi o criador, após escrever uma crônica sobre o assunto, em 1976. Já o jornalista Jota Ferreira também reivindica a autoria, afirmando tê-la inventado no fim dos anos 1970.
O primeiro registro comprovado, porém, data de 10 de dezembro de 1975, em uma matéria do Diario de Pernambuco intitulada "Perna fantasma surge em moradia em Tiúma".
Na reportagem, um jovem de São Lourenço da Mata, no Grande Recife, teria deixado a casa do pai após ver a sombra de uma perna passeando pelas paredes. Dias depois, o próprio pai relatou o mesmo fenômeno. Ele chamou vizinhos, que confirmaram a aparição.
No dia seguinte, o jornal publicou "Perna Fantasma já é um problema policial", relatando que o dono da casa procurou o padre local, que se recusou a ajudar por não acreditar na história. A recusa frustrou os moradores de Tiúma, que esperavam algum tipo de apoio espiritual ou explicação religiosa.
Foi nessa segunda notícia que uma entrevistada disse ter visto que "a perna era cabeluda" — possivelmente o momento em que o nome da lenda surgiu.
O noticiário seguiu repercutindo o caso, chegando a publicar uma pesquisa de opinião com operários, comerciários e funcionários públicos, revelando que muitos acreditavam na história.
Os boatos cresceram tanto que a Arquidiocese de Olinda e Recife se pronunciou, em nota publicada sob o título "Perna Fantasma é invenção do povo".
A lenda na cultura
Em 1º de fevereiro de 1976, a Perna Cabeluda voltou a ocupar uma página inteira do Diario de Pernambuco, desta vez em um conto policial assinado por Raimundo Carrero. Na história, a perna atacava pessoas no pescoço e no abdômen, invadia casas e agredia uma bela moça.
"Me inspirei em uma história contada por um operário do jornal. Ele dizia ter levado um tapa — embora perna não dê tapa", lembra Carrero, ao JC. "Achei por bem escrever uma crônica no Diario, e desde então o pessoal começou a falar disso. Pegou como lenda."
Ainda em 1976, a perna virou tema de uma troça carnavalesca de Nazaré da Mata e também inspirou a decoração de um carro alegórico de um concurso promovido pela EMPETUR, em que o Tubarão de Steven Spielberg (lançado em 1975) segurava a perna na boca. (Alerta de spoiler)
Quem já viu "O Agente Secreto", sabe que o filme começa com uma perna dentro de um tubarão encontrado na praia de Candeias.
Já nos anos 1990, a lenda inspirou também a geração do manguebeat, com o curta "A Perna Cabiluda" (1995), de Gil Vicente, Marcelo Gomes, Beto Normal e João Jr., do qual Chico Science e Fred Zero Quatro participaram, além de ser citada em "Banditismo por uma questão de classe", que abre o disco "Da Lama ao Caos".
A "paternidade" da perna
Por conta da crônica policial de 1976, muitos apontam Carrero como o "pai" da perna, título disputado também por Jota Ferreira, então jornalista de rádio.
Em entrevista ao podcast Sem Arrudeio, do JC, Ferreira contou que soube do caso durante um plantão no Hospital da Restauração, quando trabalhava na Rádio Repórter:
"Estava no ar o programa Super Manhã e fiquei sabendo que uma mulher ensanguentada dizia ter sido agredida pela perna cabeluda. Perguntei: 'Perna cabeluda? Como assim?'. Ela só confirmava com a cabeça e tossia muito sangue", relembrou.
Segundo ele, a mulher trabalhava em uma pensão no Bairro do Recife — então uma zona de meretrício — e teria se desentendido com um marinheiro que usava seus "serviços". "A perna dele era cabeluda, mas ela não sabia o nome dele nem de onde ele vinha. Até hoje ninguém sabe quem era", contou.
A fala de Ferreira dá pistas dos contextos em que a lenda se consolidou: ruas escuras, bares, boemia e prostíbulos, espaços de moral ambígua, onde medo e desejo se misturavam.
Em vídeo publicado em seu canal no YouTube, o jornalista acrescenta que o caso ocorreu "no final dos anos 1970", portanto possivelmente depois da matéria do Diario, que não tinha assinatura — o que torna improvável descobrir seu verdadeiro autor.
Mas, como resume Carrero: "A perna foi, acima de tudo, uma invenção popular."
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