Novo livro de Jamil Chade detalha o colapso social, ético e econômico nos EUA no governo Trump
O jornalista lançou, nesta quinta-feira (7), no Recife, a obra 'Tomara que você seja deportado', em parceria com a Bienal do Livro de Pernambuco

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Um dos principais jornalistas investigativos do Brasil, Jamil Chade lançou oficialmente no Recife o seu novo livro, 'Tomara que você seja deportado - Uma viagem pela distopia americana', em evento realizado nesta quinta-feira (7), na Sala Aloísio Magalhães, no campus Ulysses Pernambucano da Fundaj, no bairro do Derby, na região central da capital, e que já faz parte da programação da XV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco.
Em sua nova obra, que teve o prefácio do cineasta Walter Salles, o correspondente internacional percorreu por diversas cidades dos Estados Unidos durante o período eleitoral norte-americano até os primeiros meses do governo Trump, e se deparou com a degradação da democracia do país que, por décadas, vendeu ao mundo a imagem de terra da liberdade. O livro expõe, através de uma série de reportagens, o medo entre as comunidades de imigrantes, o crescimento de uma política de ódio e exclusão, ignorando direitos fundamentais, num retrato de um colapso ético e humanitário que se instalou no país.
"Eu morava em Genebra, na Suíça, e por questão familiar nos mudamos para os Estados Unidos. Chegando lá, a terra estava tremendo. Eu não tinha ideia da tensão e ebulição que estava ocorrendo no país. Enquanto que a gente (fora dos EUA) ficava falando sobre a disputa de Biden x Trump, depois Kamala x Trump, eu comecei a ver que tinha uma outra história que estava acontecendo na sociedade americana, que vivia uma encruzilhada. O país, que vendeu para o mundo o 'sonho americano', que era a possibilidade de você sair da pobreza ou mudar de status social dentro da tua própria vida, não daqui a três gerações... Que bastava trabalhar. Mas isso já não era uma verdade. Um país que é rico, mas que tem mais de 40 milhões de pessoas vivendo na pobreza", destacou Jamil Chade.
Diante dessa percepção, o trabalho seria ir em busca de histórias nos mais diferentes estados do país. "Decidi fazer uma espécie de diário sobre o que seria aquela campanha eleitoral, o que estava em jogo para os Estados Unidos e conhecer a realidade daquela sociedade. Visitei 15 estados, percorrendo mais de 10.000 km, e procurei escrever os textos no dia que aqueles acontecimentos foram anunciados, o que eles de fato ocorreram. Então, na hora de publicar o livro, eu não voltei e revisitei o texto. Eu queria manter isso, o mesmo assombro, o mesmo susto das declarações que a gente ouviu", explicou.
Latinos votaram em Trump
Mesmo com o então candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, adotando um discurso contra os imigrantes, ele recebeu um grande número de votos da população latina residente no país. "Mais de 50% dos votos dos homens latinos foram para Trump, mesmo ele falando tudo aquilo que a gente ouviu. Então, parecia uma incoerência total. E nesse trabalho para tentar entender, eu perguntava para os latinos o porquê dessa escolha, e o que eu escutava deles era que 'não é com a gente, Trump está falando dos criminosos latinos'. Mas quando ele foi eleito e assumiu o governo, ocorreu um enorme susto e desilusão por parte desses eleitores, por descobrirem que Trump também estava se referindo a eles quando dizia que iria expulsar os imigrantes. Eu diria que dava para sentir a tensão, dava para sentir que uma ruptura estava por vir, mas ninguém, nem os eleitores do Trump, esperavam que a velocidade fosse tão elevada como aconteceu a partir de janeiro", contou Chade.
Para o jornalista, nem mesmo a ampla disponibilidade dos meios de comunicação e das redes sociais com informações verídicas foram suficientes para vencer a desinformação propagada pelo atual presidente norte-americano durante a campanha eleitoral. "O fato de os latinos votarem em Trump tem algumas explicações. Uma delas que ouvi de muita gente foi porque ele defendia 'os nossos valores conservadores cristãos'. Quando a gente está de fora, esquece que a maioria dos imigrantes latinos são cristãos, frequentam a igreja e defendem que a família é a base mais importante. A gente acreditava que esse discurso de Trump atingia apenas os supremacistas brancos, mas a verdade é que chegava para esses latinos como alguém que fala a mesma língua", apontou.
"Além dessa questão de valores, também tem o aspecto da questão econômica. Trump conseguiu fazer que um imigrante visse o outro imigrante como o inimigo. É aquela história, eu já estou aqui, já tenho meu trabalho e não quero que outros imigrantes venham. E durante a campanha ele conseguiu convencer esses imigrantes iludindo-os com um discurso de que vocês que estão aqui, ok, mas não queremos mais ninguém. Além da questão da inflação, que afeta os mais pobres. E quem são os mais pobres? Justamente os latinos que embarcaram, não todos, óbvio, mas as mulheres não, porque as mulheres tinham uma rejeição grande a Trump, mas os homens latinos nessa história. E quando Trump assume o governo, vem a enorme desilusão", falou Jamil Chade.
Após o primeiro semestre na presidência dos Estados Unidos, as pesquisas apontam que a popularidade de Donald Trump despencou entre os latinos. "Eles precisaram sentir na pele e descobrir que eles também fazem parte do grupo de latinos que Trump quer fora do país, não apenas o criminoso. E mesmo àqueles imigrantes que estão regulares no país começam a ter problemas, por exemplo, nos negócios. Alguns têm um mercadinho, outros possuem restaurantes de comida mexicana, e que os compradores eram entre outros os imigrantes irregulares que deixaram de comprar porque foram deportados. Ou seja, eles acabaram sendo afetados", relatou o jornalista.
Ilusão dos brasileiros
Em suas viagens pelos Estados Unidos, Jamil Chade também entrevistou famílias brasileiras que moravam no país há décadas e, por isso, também acreditavam que os discursos de ódio e exclusão feitos por Trump contra os imigrantes, em sua maioria os latinos, não eram direcionados para eles. "Essa é uma história muito boa e interessante porque os brasileiros não consideram que eles fazem parte dos latinos dos Estados Unidos. Principalmente os brasileiros bolsonaristas. Eu até brincava com eles dizendo: 'Claro, vocês são noruegueses, são do grupo dos escandinavos'. Então tinha essa coisa de eles acreditarem que não se tratava sobre os brasileiros. E no governo Trump ficou muito claro que é tudo igual. É absolutamente tudo igual", disse o correspondente.
Após os seis primeiros meses do governo do republicano, a tensão toma conta entre os brasileiros diante da incerteza da permanência nos Estados Unidos. "A comunidade brasileira hoje descobriu essa verdade, e é super triste. As histórias são dramáticas. A comunidade brasileira hoje vive uma tensão muito grande e uma agonia muito grande sem saber como será o futuro, principalmente porque muitos viram conhecidos sendo deportados", contou.
Jornalismo investigativo no exterior
Com mais de duas décadas atuando como correspondente internacional, Jamil Chade se transformou referência no jornalismo investigativo, em suas visitas a mais de 70 países percorreu trilhas com imigrantes; visitou acampamentos de refugiados na Europa, África e Oriente Médio; viajou com Papa Bento XVI e Papa Francisco ao Brasil; percorreu a África com o secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon; acompanhou refugiados no Iraque, Somália, Darfur e Libéria; além de ter revelado o esquema de corrupção na Fifa.
"Fazer esse trabalho no exterior tem uma dificuldade real de que você não tem o mesmo acesso que os outros. De repente não só pelo seu nome, mas porque o seu meio não é um meio reconhecido lá. Então, sim, é uma dificuldade sim extra fazer esse trabalho investigativo no exterior. Mas a dificuldade maior, e aí eu acho que é no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa, sem distinção de fronteira, que é o fato de o jornalismo viver uma encruzilhada atualmente. Ele precisa competir por audiência, o modelo de negócios é absolutamente incerto ainda, e fica provado que o antídoto para desinformação é um jornalismo forte. Somos nós o antídoto à desinformação", disse.
"Só que essa informação acontece no momento justamente que nós estamos enfraquecidos como setor, não como repórter especificamente ou como um jornal. Esse é o grande desafio e não é por acaso que esses governos atacam o jornalismo. Não é porque eles não gostam daquela jornalista ou daquele, mas para querer desacreditar e tirar a legitimidade dos jornais profissionais, pois essa é a forma de garantir que a desinformação possa acontecer. Quem é o contrapeso à desinformação? É o jornalismo profissional. Quanto mais você tirar a força desse jornalismo profissional, maior vai ser a capacidade da desinformação prosperar", apontou Chade.