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Estilista Jorge Feitosa transforma memória e resistência da sulanca em moda afetiva na Fenearte

Com 25 looks autorais, o estilista encerra neste sábado (19) os desfiles da Moda Fenearte, revisitando sua trajetória como "filho da Sulanca"

Por Adriana Guarda Publicado em 18/07/2025 às 22:39 | Atualizado em 18/07/2025 às 22:47

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O estilista Jorge Feitosa volta a caminhar pelos corredores da Fenearte, desta vez com o sentimento de quem reencontra a si mesmo. Neste sábado (19), ele sobe à passarela da Moda Fenearte com um desfile que é estreia e reencontro ao mesmo tempo. Pela primeira vez, apresenta uma coleção no Recife — e será no maior evento de artesanato da América Latina, como convidado especial.

“É uma sensação mista. Eu nunca desfilei aqui e é como se eu estivesse estreando, mesmo depois de mais de 20 anos de trajetória”, diz. O momento tem peso de celebração, mas também de afirmação política: é a sulanca, muitas vezes marginalizada, que ocupa o centro da cena — como arte, como identidade e como memória viva.

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Entre retalhos de afeto e linhas de lembrança, Jorge Feitosa transforma em moda as histórias vividas com a mãe e a tia nas feiras de confecção. Seu desfile na Fenearte é um tributo à Sulanca e às mulheres que o ensinaram a sonhar com tecido nas mãos. - Divulgação

Este ano, a Moda Fenearte, instalada no Mezanino do Centro de Convenções, reverencia a Feira da Sulanca, em linha com o tema "A Feira das Feiras". Durante dois sábados (12 e 19) foram programados 10 desfiles, com coordenação e edição de moda de Nestor Mádenes. Jorge encerra a programação do evento, às 20h, com a apresentação do desfile "Da Terra da Sulanca".

"A homenagem à Feira da Sulanca me toca profundamente. Meu trabalho é todo construído a partir desse fazer popular, desse movimento que é a sulanca, no Agreste. Nasci nesse ambiente. Não aprendi primeiro o modo industrial para depois conhecer a sulanca — foi o contrário. Cresci vendo meus pais, avós e tias trabalhando com retalhos. Fazer roupa, para mim, era isso: pegar o que tinha e transformar em vestuário. Mais tarde entendi que existiam outros métodos de produção", conta.

O desfile "Da Terra da Sulanca" rememora a trajetória do estilista, desde sua infância até agora. O ajuntamento, como ele gosta de chamar a coleção, tem um caráter memorialista e afetivo, mas também político. Assim como repudia a tentativa de colonização sobre a sulanca, Jorge também condena a tentativa de rotular a moda nordestina sempre como regonal.

"Acredito ser muito importante entender se cultivamos o nosso regional ou apenas reproduzimos o regional dos outros. Porque afinal, regional tudo é", critica, ressaltando que sua moda é nacional, cosmopolita.

Sulanca é potência
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Neste sábado (19), o estilista Jorge Feitosa encerra os desfiles da Moda Fenearte com a coleção "Da Terra da Sulanca", composta por 25 looks que percorrem sua trajetória entre o agreste e as passarelas. - Divulgação

 

“A sulanca foi criada pelo povo, com as sobras, de forma coletiva, como sobrevivência e como linguagem. Mas durante muito tempo foi tratada como uma coisa menor, marginalizada por uma visão e uma invasão colonizadora”, afirma.

Ele conecta o processo sulanqueiro a pensamentos de Paulo Freire, ao uso do que está disponível, à criação como ação política. “A gente pensa em moda como se fosse algo separado da vida real. Mas o povo sempre fez moda. Minha mãe fazia moda. Eu só organizei isso em forma de narrativa e desfile.”

Memória e afeto costurados à mão
Ao falar da infância, Jorge se emociona. “Minha mãe e minha tia não fazem ideia do que elas me ensinaram. Elas não têm noção do quanto isso transformou a minha vida. Eu comecei a costurar aos 6 anos. Minha mãe dizia que era coisa de menina e eu usava a máquina escondido. Depois, com a falta de mão de obra, os homens começaram a costurar também", recorda.

Moda como linguagem política

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Encerrando a programação da Moda Fenearte, o estilista Jorge Feitosa apresenta um manifesto em forma de roupa: peças que costuram sua história com a Sulanca, o artesanato e a luta por reconhecimento. - Divulgação

Na passarela da Fenearte, o estilista vai apresentar 25 looks criados ao longo da carreira, todos a partir de tecidos reaproveitados, mas com um olhar de aperfeiçoamento técnico — uso de máquinas industriais e capricho no acabamento.

Antes do desfile, o estilista participa de uma conversa sobre o tema Manifesto da Sulanca, ao lado do conterrâneo Rodolfo Alves. O documento traz dez pontos de atenção sobre a feira.

Pesquisar para descobrir

Além de estilista, Jorge é pesquisador. Está finalizando um mestrado na Universidade de São Paulo (USP), na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), tendo a sulanca como tema. "Existe um tesouro nesse fazer. E, quando se fala hoje em sustentabilidade, em upcycling, isso já era praticado na sulanca nos anos 1950 e 1960. A indústria chegou depois com seus termos em inglês, mas o saber-fazer já estava aqui", defende.

Na pesquisa, ele descobriu que ainda há pessoas que trabalham com retalhos, como nos anos 60 e 70. "Entrevistei mulheres que continuam usando esse método, criando a partir dos restos. Fiquei encantado com a produção delas. Uma pesquisa que pretendo fazer futuramente é mapear quem ainda trabalha assim. Não há dados sobre isso", adianta.

Ele acredita que, se esses grupos forem identificados, é possível contribuir com a melhoria das condições de trabalho delas, entendendo suas necessidades, oferecendo apoio técnico, criativo e logístico. “A modernidade pode ser ensinar gestão, aprimorar técnicas — sem destruir a essência do que fazem", sugere.

Na passarela da Fenearte, ele não apenas desfila roupas: compartilha vivências, afeto, política e pertencimento. Mostra que, da terra da sulanca, brotam narrativas capazes de redesenhar a moda — com agulha, com linha e com memória.

Camila Svenson/Divulgação
Desfile de Jorge Feitosa reúne looks criados ao longo de seus mais de 20 anos de trajetória - Camila Svenson/Divulgação

Sulanca como artesanato

“Tenho um desejo muito forte de que essa pesquisa que venho desenvolvendo possa se reverter em ações concretas para quem ainda faz sulanca. Um sonho imediato seria ver a sulanca reconhecida como artesanato. Trata-se de um saber-fazer artesanal.

Se alguém acha que a sulanca não é isso, tudo bem, que continue com suas confecções. Mas, para quem entende o valor disso, esse reconhecimento poderia atrair outro tipo de público, com outro olhar, com outra potência econômica e criativa. A sulanca, para mim, é como uma botija enterrada, cheia de tesouros esperando para serem descobertos", define, com a propriedade de quem devota a história de uma vida à sulanca. 

 

 

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