Segurança | Notícia

Cuidar, curar e denunciar: a missão dos veterinários diante dos maus-tratos aos animais

Em Pernambuco, 232 queixas de violência contra pets foram somadas em apenas oito meses. Especialistas falam sobre sinais e cuidados aos cães e gatos

Por Raphael Guerra Publicado em 16/10/2025 às 9:00

Clique aqui e escute a matéria

Companheiros leais e cada vez mais presentes nos lares brasileiros, os animais domésticos somam cerca de 160 milhões no País — a terceira maior população de pets do mundo, de acordo com estimativa. Mas as denúncias de maus-tratos também seguem se multiplicando. Só em Pernambuco, 232 boletins de ocorrência foram registrados pela polícia entre janeiro e agosto de 2025.

A ação rápida e técnica dos médicos-veterinários é fundamental para identificar os tratamentos adequados e salvar a vida desses animais. A profissional Mirtes Chivers, de 43 anos, que atua no Recife, conhece bem a difícil rotina de cuidados com os pets vítimas de maus-tratos.

“Trabalhei num bairro mais violento, e recebi animal com tiro de arma de fogo e até machadada na cabeça de um cão. Geralmente quem leva para atendimento não é quem fez o ato. E algumas vezes quem praticou a agressão diz que fez isso para se defender do animal. Ficamos numa situação complicada”, contou a veterinária.

“Há casos também de animais que chegam passando fome, desidratados, sem qualquer tipo de higiene. É de cortar o coração. Existem pessoas que não têm condições de ser responsáveis por um pet e tentamos resolver para ficar melhor para ambas as partes. Na nossa graduação, fazemos a promessa de priorizar a saúde do ser humano em todas as ocasiões, então agimos com muita empatia e jogo de cintura”, completou Mirtes, que é dona da clínica PET friendly, localizada no bairro do Ipsep, Zona Sul da capital pernambucana.

O amor pelos animais, desde a infância, foi determinante para que Mirtes escolhesse a carreira de veterinária. Ela também defende que o papel desses profissionais vai muito além dos cuidados técnicos para salvar a vida dos cães e gatos que chegam feridos ou com algum problema de saúde.

No País, novas abordagens estão sendo adotadas, reconhecendo que a saúde dos seres humanos, animais e meio ambiente está interligada. A chamada Saúde Única propõe uma atuação voltada à prevenção de zoonoses (como a raiva e a leptospirose), com o objetivo de promover o bem-estar para todos. A parceria entre médicos-veterinários e zootecnistas garante mais qualidade de vida para todos.

DIVULGAÇÃO
"Quando falamos em combater os maus-tratos, não estamos apenas protegendo os animais: estamos cuidando da saúde da sociedade e da integridade do meio ambiente", pontua a médica-veterinária Ana Elisa Almeida, presidente do CFMV - DIVULGAÇÃO

“A medicina veterinária é um pilar da Saúde Única. Quando falamos em combater os maus-tratos, não estamos apenas protegendo os animais: estamos cuidando da saúde da sociedade e da integridade do meio ambiente. A violência contra os animais é, muitas vezes, o primeiro sintoma de um desequilíbrio mais profundo, que ameaça também as pessoas e os ecossistemas. É por isso que defendemos que o olhar do médico-veterinário precisa estar presente em todas as esferas: da clínica à gestão pública, das políticas de bem-estar animal ao planejamento urbano e ambiental”, explicou a médica-veterinária Ana Elisa Almeida, presidente do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV).

“Adotar a abordagem de Saúde Única no cotidiano significa compreender que o bem-estar animal, a saúde humana e a sustentabilidade ambiental são partes de um mesmo sistema. Quando uma dessas dimensões adoece, todas adoecem juntas. É nosso dever atuar de forma integrada para prevenir doenças, promover equilíbrio e garantir um futuro mais saudável para todos”, completou.

CUIDADOS AOS ANIMAIS COMO MISSÃO DE VIDA

Essa relação de cuidados com os animais transformou a vida da médica-veterinária Polyanne Borges, como ela mesma define. Depois de trabalhar dez anos como auxiliar de veterinária, decidiu que precisava fazer o curso universitário para ampliar conhecimentos e dar um novo rumo à vida profissional, contribuindo ainda mais com a saúde dos pets.

“Hoje não sou mais a mesma pessoa. Todo esse manejo com animais que são acolhidos, ele transforma todo tipo de vida. Não só dos bichinhos, mas também dos cuidadores e tutores”, afirmou a profissional, que é coordenadora do Hospital Veterinário SOS Animal e gerente do abrigo Cantinho da Filó, localizado no bairro da Imbiribeira, Zona Sul do Recife.

CORTESIA
"Nossa missão é fazer de tudo para que o animal esqueça os maus-tratos que sofreu", declara a médica-veterinária Polyanne Borges - CORTESIA

Polyanne contou que a experiência de trabalhar em abrigo de animais é muito intensa e que requer um olhar ainda mais especial para os cães e gatos que chegam precisando de cuidados de saúde e muito carinho.

“A gente encontra em abrigos animais com doenças que só vi nos livros. Alguns nunca passaram por tratamento, por consulta. Aqui [Cantinho da Filó], esses cães e gatos passam por avaliação rigorosa clínica e, em caso de doença, o início imediato do tratamento. A nossa missão é fazer de tudo para que o animal esqueça os maus-tratos que sofreu, para que fique tranquilo e aceite a aproximação de uma família que deseja adotá-lo.”

A médica-veterinária explicou que os animais vítimas de maus-tratos reagem de diferentes formas, sobretudo mudando o comportamento. “Maus-tratos não é só quando o tutor bate no animal. Mas em geral há alteração no comportamento, ficando o pet mais arredio ou acuado, sem querer interação.”

Somente no Recife, a Polícia Civil somou 50 denúncias de violência contra os animais nas delegacias entre janeiro e agosto deste ano. Ao longo de 2024, foram 43 casos.

Polyanne relatou que um dos casos mais graves que tratou foi de um animal vítima de zoofilia.

“Ele foi violentado e teve a exposição do reto. Mas a gente conseguiu reverter a situação e ele mudou de vida. Ele hoje é portador de leishmaniose, segue com tratamento com avaliação a cada seis meses, exames periódicos, com qualidade de vida, extremamente carinhoso. É nosso xodó. Espero que ele não se lembre mais dessa fase da vida”, disse.

A zoofilia é enquadrada no crime de maus-tratos a animais. No caso de cães e gatos vítimas, a pena para os autores pode chegar a cinco anos de detenção, além de multa arbitrada pela Justiça.

Na Câmara dos Deputados, em Brasília, tramita um projeto de lei para tornar, de fato, a zoofilia como crime, ampliando a pena para até seis anos, com possibilidade de dobrar esse tempo em caso de morte do pet.

ACOLHIMENTO E DEDICAÇÃO

CORTESIA
Eliete Silva diz que mudou de vida ao criar um abrigo para animais: "Vi como um chamamento de Deus" - CORTESIA

O abrigo Cantinho da Filó, inaugurado há seis anos, conta atualmente com 496 animais, sendo 372 cães e 124 gatos. A proprietária, Eliete Silva, relatou que um vídeo na internet foi decisivo para que ela começasse uma nova fase da vida, dedicada aos pets.

“Vi um vídeo de cães que se reencontraram com seus donos. Logo depois, um vídeo de ONGs que resgatam animais bem doentes e como eles ficam bem após os cuidados. Isso me tocou profundamente, vi como um chamamento de Deus. Mudou completamente minha vida”, descreveu.

Segundo ela, cerca de 90% dos animais do abrigo foram recolhidos das ruas. O restante chegou pelas mãos dos próprios tutores, sem condições financeiras de cuidar quando eles adoecem.

“No abrigo, cuidamos até a cura total. E, em geral, ficamos com os animais, porque muitas das pessoas não têm a menor condição de ficar com eles”, pontuou.

Quem desejar fazer doações ao abrigo pode entrar em contato pela página “cantinhofilo”, no Instagram, ou pelo número: 81.9.8649.1699.

“Podem ser feitas doações de ração, materiais de limpeza, medicamentos. O que a pessoa tiver disposta a doar, pode entrar em contato e saber onde tem nossos postos de coleta”, disse Eliete.

É PRECISO DENUNCIAR OS MAUS-TRATOS

A médica-veterinária Mirtes Chivers reforçou que os sinais de maus-tratos aos animais são diversos e vão muito além das lesões encontradas pelo corpo.

“Deixá-los sozinhos e estressados num ambiente pequeno ou fechado, não ter água e alimento de qualidade para ele, abandonar um animal domesticado na rua, não prestar socorro médico quando necessário… Tudo isso são formas de maus-tratos. Quem escolhe um cão e gato para criar deve ter consciência sobre os cuidados e que a lei prevê, hoje, que o bem-estar deles é de responsabilidade do dono também”, afirmou.

Thiago Lucas/ Design SJCC
Violência contra os animais - Thiago Lucas/ Design SJCC

As queixas de maus-tratos aos animais podem ser registradas na Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (Depoma), no bairro de Tejipió, no Recife. Quem estiver em outro município pernambucano, pode procurar a unidade policial mais próxima.

A Depoma atua juntamente com órgãos como Ibama e secretarias municipais de defesa dos animais.

“Algumas vezes não constatamos crime na denúncia recebida, após a investigação. Porém, outras vezes, o crime é constatado e iniciamos as investigações. É importante frisar que sempre que atendemos uma denúncia, atuamos junto com um veterinário do município, para identificar e constatar os maus-tratos”, esclareceu o delegado Ademar Cândido, titular da Depoma.

Em Pernambuco, Queixas também podem ser registradas pelo site servicos.sds.pe.gov.br/delegacia.

 

 

Compartilhe

Tags