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Máfia dos combustíveis em Pernambuco gerou lucro milionário e prejuízos aos motoristas, aponta investigação

Relatório do MPPE descreve em detalhes esquema envolvendo empresários, caminhoneiros e policiais civis e militares. Crimes ocorreram entre 2022 e 2024

Por Raphael Guerra Publicado em 03/08/2025 às 7:00

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O mercado ilegal de combustíveis, espalhado pelo País e difícil de ser combatido sem a integração de órgãos de fiscalização e investigativos, gera altos lucros ao crime organizado e sérios prejuízos aos motoristas. A sonegação de impostos no setor vai além: com a perda de bilhões anualmente, três áreas fundamentais perdem investimentos: saúde, segurança pública e educação.

Em Pernambuco, um forte esquema de furto e adulteração de combustíveis - vendidos em postos da Região Metropolitana do Recife (RMR) - foi descoberto a partir de investigação conduzida pela Polícia Civil. Na máfia, foram identificados empresários, caminhoneiros, policiais civis e militares agindo livremente pelo menos entre os anos de 2022 e 2024.

Relatório do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), obtido com exclusividade pelo Jornal do Commercio, revela detalhes de como a organização criminosa atuou e lucrou milhões de reais, ao mesmo tempo em que impostos foram sonegados e motoristas tiveram os veículos danificados pelo uso de combustíveis de péssima qualidade e em desacordo com as exigências estabelecidas em leis e regulamentos.

Segundo a investigação, motoristas de caminhões contratados por empresas fornecedoras de combustíveis eram responsáveis pelo transporte de gasolina, álcool e diesel até os postos compradores. O carregamento era feito no Complexo Industrial Portuário de Suape, localizado no Cabo de Santo Agostinho, na RMR.

Durante o trajeto, os caminhoneiros acionavam outros integrantes do grupo, avisando-os sobre o horário de saída dos caminhões, local de parada, tipo de combustível transportado e a quantidade que poderia ser retirada. Há indícios de que alguns motoristas chegavam a utilizar bloqueadores de sinal GPS para que o proprietário da empresa não percebesse o desvio da rota dos veículos carregados.

"No ponto de encontro combinado, os indivíduos aguardavam os caminhões já com os galões utilizados para furtar os combustíveis. Em seguida, tais galões eram transportados para outros locais, inclusive para a residência de alguns investigados, onde eram armazenados em local impróprio e posteriormente comercializados", descreveu o documento da investigação.

O combustível, armazenado de forma irregular em galões plásticos, colocava em risco não só os vendedores, mas qualquer pessoa próxima ao local do depósito por causa do perigo de explosões dos materiais inflamáveis.

PCPE/DIVULGAÇÃO
Combustíveis furtados, armazenados em galões de plástico, eram guardados de maneira irregular e com risco de explosão - PCPE/DIVULGAÇÃO

Os postos onde os combustíveis adulterados eram vendidos chamavam a atenção dos motoristas devido ao preço inferior ao praticado no mercado. Grandes filas eram formadas ao longo do dia. Em geral, eles não suspeitavam da qualidade duvidosa, apesar de tantos alertas e campanhas de conscientização no País.

Os problemas nos veículos, no entanto, não demoravam a aparecer. Começava com a perda de desempenho, seguida de danos ao motor e prejuízos ao bolso dos condutores.

Levantamento do Instituto Combustível Legal (ICL) apontou que até 24% do diesel utilizado em caminhões no País teve algum tipo de adulteração em 2024. Em Pernambuco, essa porcentagem foi estimada em 4%. O resultado teve como base dados do Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis).

POLICIAIS TINHAM PAPEL FUNDAMENTAL NA MÁFIA

Na investigação, a Polícia Civil de Pernambuco identificou que cada envolvido no esquema possuía uma tarefa determinada.

"O grupo era organizado, bem estruturado. Havia pessoas responsáveis pelo furto, outras que agiam como receptadores, por exemplo. Agora, é importante dizer que tudo isso só foi possível porque havia a participação de policiais, que recebiam dinheiro e combustíveis para não realizarem fiscalização e prisão dos envolvidos. Uma conversa mostrou que tinha policial ganhando balde de combustível", afirmou o delegado Ney Luiz Rodrigues, responsável pela investigação, em entrevista ao JC.

Tanto policiais militares quanto civis atuavam no esquema criminoso, indicou o relatório do inquérito.

"É notório o envolvimento, principalmente omissivo, de policiais civis e militares no desvio de combustível, inclusive ocorreram diversas citações de nomes de policiais envolvidos nos relatórios de interceptação telefônica que subsidiaram a investigação, em suas duas fases", detalhou o documento.

Com o avanço da investigação, policiais civis lotados na Delegacia do Cabo de Santo Agostinho acabaram sendo transferidos para o município de Paulista, também na RMR. Um diálogo indicou que quantias eram repassadas aos policiais de forma periódica - possivelmente como propina para que eles não apurassem possíveis denúncias de furto e adulteração de álcool, diesel e gasolina.

Um policial civil foi identificado como o responsável pela segurança do suposto líder do grupo, o empresário e dono de postos Claudivando José da Silva. Relatório de Inteligência Financeira (RIF) apontou que o agente público efetuou cinco depósitos para Claudivando, totalizando o valor de mais de R$ 414 mil.

O policial, de acordo com o inquérito, repassava aos outros integrantes da organização orientações de como burlar as ações policiais. Há indícios ainda de que ele fornecia drogas, como crack. Em um dos diálogos, cobrou combustíveis e ameaçou “acabar com tudo” caso suas exigências não fossem atendidas.

"O crime só ocorre porque os policiais militares e civis envolvidos recebem algo em troca (combustível ou dinheiro). Do contrário, conforme relatado nas transcrições das interceptações telefônicas, como diversos grupamentos policiais trabalham na área (GATI, Contra Resposta, P2), não seria possível que o crime passasse desapercebido", apontou documento da investigação.

A alta rentabilidade do esquema levou a indícios de disputas por território entre os criminosos, que podem ter motivado homicídios na região.

A primeira operação, que contou com mais de 100 policiais, em fevereiro de 2022, prendeu 25 suspeitos e cumpriu 21 mandados de busca e apreensão domiciliar. A partir do recolhimento e análise de celulares, mais detalhes de como a organização criminosa agia e o envolvimento de mais pessoas foram descobertos.

Para tentar despistar as investigações, os criminosos utilizam termos codificados para os combustíveis: "graxa" para diesel, "branco" para álcool e "fanta" para gasolina.

Na segunda fase da operação, em julho de 2024, mais dez mandados de prisão foram cumpridos.

PCPE/DIVULGAÇÃO
"O grupo era organizado, bem estruturado. E só existia porque tinha a participação de policiais. É um mercado muito lucrativo", disse o delegado Ney Luiz Rodrigues - PCPE/DIVULGAÇÃO

VIDA DE LUXO PARA EMPRESÁRIO ACUSADO DE LIDERAR MÁFIA

Apontado como líder do grupo, Claudivando José da Silva, também conhecido como Vando, é proprietário de ao menos três postos de combustíveis localizados nos bairros de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, Caxangá e Cordeiro, Zona Oeste, além de uma transportadora no Cabo de Santo Agostinho. Lá, segundo a investigação, parte dos combustíveis era guardada.

O relatório do MPPE descreveu Vando como uma pessoa que tentava dar uma falsa aparência de licitude às práticas criminosas, vivendo uma vida luxuosa, refletida na aquisição de carros de luxo e imóveis de alto valor em Boa Viagem e na praia de Muro Alto, uma dos cartões-postais do Litoral Sul de Pernambuco.

A investigação afirmou que ele utilizava "laranjas" para movimentação de dinheiro e registro de postos de combustível e maquininhas de cartão.

"Durante todo o período da investigação, sobretudo durante as interceptações, Vando conversou diversas vezes com contadores e demonstrou interesse em abrir empresas em nome de terceiros para funcionamento dos postos de combustíveis. Nesse sentido, os analistas identificaram que o posto de combustível situado em Boa Viagem estaria emitindo notas fiscais com CNPJ’s distintos", citou a polícia.

Em depoimento, o empresário negou qualquer crime. O advogado Marcos Fonseca, responsável pela defesa dele, afirmou que Claudivando é empresário no ramo de combustíveis há mais de 24 anos, "com atuação pública, regular e formalizada, sendo proprietário de estabelecimentos que operam com todos os registros, alvarás e autorizações exigidas pelos órgãos de controle".

"Ao longo de sua trajetória, sempre pautou sua conduta empresarial pela legalidade, pela transparência e pela geração de emprego e renda em Pernambuco. A imputação que lhe foi dirigida, de supostamente liderar organização criminosa, é negada de forma veemente pela defesa", disse Fonseca.

"A denúncia apresentada, embora revestida de tecnicidade formal, não se sustenta em provas materiais capazes de justificar a criminalização da atividade empresarial de Claudivando, tampouco de associá-lo à estrutura organizada de crimes descrita no inquérito policial", completou.

PROCESSO NA JUSTIÇA

Ao todo, oito acusados respondem pelos crimes de organização criminosa e lavagem de dinheiro, incluindo Claudivando e um policial civil. Não há prazo para julgamento na Vara Criminal da Comarca de Ipojuca, visto que as audiências de instrução para coleta dos depoimentos de testemunhas e interrogatórios dos réus ainda não foram marcadas.

Os PMs identificados foram, posteriormente, alvos de outra investigação conduzida pelo Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado do MPPE e da própria Polícia Militar. O julgamento cabe à Vara de Justiça Militar.

Cuidados na hora de abastecer
Thiago Lucas/ Design SJCC - Cuidados na hora de abastecer

DESAFIOS DO COMBATE AO MERCADO ILEGAL DE COMBUSTÍVEIS

Apesar de duas operações, com dezenas de presos entre 2022 e 2024, há indícios de que o esquema de furto e venda de combustíveis adulterados não chegou ao fim no Grande Recife. A Polícia Civil segue realizando prisões esporádicas de suspeitos, aumentando a desconfiança de que o crime organizado continua lucrando alto.

O Instituto Combustível Legal (ICL), criado em 2016 com a missão de ampliar a discussão sobre o comércio ilegal no País, reforça que é preciso construir mais ações, de forma integrada, para interromper o avanço desse tipo de crime, que traz prejuízos não só aos motoristas.

Presidente do ICL, Emerson Kapaz afirmou que tem se surpreendido com a evolução do crime organizado em vários setores da economia e que isso tem se evidenciado, sobretudo, em relação aos combustíveis. "Isso tem feito com que a concorrência desleal entre os setores aumente muito", declarou.

"Hoje, há uma evidência muito forte de adulteração, fraudes operacionais, fraudes no sistema como um todo. Isso vai desde o problema de chip na bomba [de combustível] ao aumento de etanol na gasolina acima de 50 a 60%. Problemas em geral que acabam ludibriando o consumidor, que acaba não conseguindo identificar uma série de fraudes, a não ser pela diferença muito grande de preço", pontuou.

No curso da investigação sobre o esquema criminoso no Grande Recife, a Polícia Civil de Pernambuco se aprofundou em casos semelhantes ocorridos em estados como Goiás e Mato Grosso do Sul. Em ambos, conforme documentos, motoristas eram aliciados para que levassem os caminhões carregados para um local específico onde a subtração do combustível era realizada sem qualquer rompimento de lacre.

Em uma apreensão no MS, por exemplo, policiais encontraram uma mangueira conhecida por "chupacabra", instrumento utilizado para a retirada de combustível, escondida em um caminhão.

Kapaz destacou que o ICL realiza um trabalho de identificação dos locais onde ocorrem as fraudes nos combustíveis, acionando os órgãos responsáveis como os Ministérios Públicos Estadual e Federal e as polícias Federal e Rodoviária Federal.

Na avaliação do presidente do instituto, a integração entre os órgãos investigativos e de fiscalização, como a Receita Federal e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), melhorou, mas devem ser permanentes.

"Integração existe, mas agora nós precisamos de ações concretas. Esse processo é lento, mas está na hora começar a ter algumas ações concretas, porque eles [crime organizado] continuam muito fortes. A opinião pública precisa saber como é que esse pessoal opera. Eles gostam de operar na sombra e nós precisamos que a mídia divulgue."

Em fevereiro deste ano, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, determinou que a Polícia Federal instaurasse um inquérito para investigar a atuação do crime organizado no setor de distribuição de combustíveis, com foco na formação de cartéis e na infiltração criminosa no setor.

O ICL avalia que, atualmente, o governo perde cerca de R$ 30 bilhões devido à sonegação de impostos, adulterações e fraudes nas bombas de combustíveis. Dinheiro que poderia ser destinado à segurança pública, saúde e educação, por exemplo.

Só no primeiro semestre deste ano, com base em estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), calcula-se que mais de R$ 7 bilhões foram para os bolsos de sonegadores de impostos de combustíveis.

ICL/DIVULGAÇÃO
"Precisamos de ações concretas, porque eles [crime organizado] continuam muito fortes", afirma Emerson Kapaz, presidente da ICL - ICL/DIVULGAÇÃO

SIMPLIFICAÇÃO DE IMPOSTOS PARA DIMINUIR SONEGAÇÃO

O Instituto Combustível Legal defende que a simplificação dos impostos deve seguir o regime monofásico com o estabelecimento de alíquota única aplicada ao ICMS, uniformizando o tributo em todos os estados, e a equiparação do PIS/COFINS.

"A credibilidade dos dados que a gente tem apresentado pelo levantamento da inteligência do setor também tem conseguido mudanças importantes. Uma delas foi a monofasia [tributária] no diesel e na gasolina. Com isso, você tributa o combustível na refinaria, então, mesmo sem fiscalização ao longo da cadeia, o tributo já foi cobrado lá no início, reduzindo a possibilidade de sonegação", explicou Emerson Kapaz.

"A eficiência desse sistema tem se mostrado muito boa, por isso estamos finalizando parceria para a tributação monofásica do ICMS do etanol. Se a gente conseguir avançar nisso, fechamos esse elo de sonegação", completou.

Em abril deste ano, outra medida foi aprovada pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) para ampliar a transparência e melhorar a fiscalização, coibindo fraudes no setor.

Um convênio foi assinado para garantir a cooperação entre a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e as secretarias de fazenda estaduais, permitindo o acesso aos dados fiscais eletrônicos de agentes do mercado de combustíveis.

O instituto tem cobrado penas mais rígidas para as empresas que lesam a concorrência a partir da adulteração de combustíveis, sonegação, roubo de cargas e outras práticas criminosas relacionadas ao setor, aumentando o impacto contra o crime organizado e reduzindo os prejuízos à sociedade.

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