Corrupção no sistema prisional de Pernambuco: entenda esquema criminoso no Presídio de Igarassu
Investigação da Polícia Federal revelou que policiais penais e ex-gestores recebiam propina para liberar entrada de drogas, bebidas e até prostitutas

O Presídio de Igarassu, o mais superlotado e precário do sistema prisional de Pernambuco atualmente, ganhou os holofotes a partir de 25 de fevereiro de 2025, quando a Polícia Federal deflagrou a operação La Catedral com o objetivo de prender policiais penais suspeitos de participação num esquema de corrupção e que beneficiava os presos.
Na primeira fase da operação, o ex-diretor da unidade Charles Belarmino de Queiroz e outros sete policiais penais foram presos preventivamente. Outros servidores também foram afastados das funções públicas.
A investigação indicou que eles liberavam a entrada de drogas, bebidas alcoólicas, comidas e até garotas de programa no Presídio de Igarassu. Em troca, recebiam pagamentos em dinheiro via Pix, comidas e joias.
Na segunda fase da operação, em 8 de abril, o alvo foi André de Araújo Albuquerque, ex-secretário executivo da Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap) e ex-superintendente de Segurança Prisional.
COMO A POLÍCIA COMEÇOU A INVESTIGAR A CORRUPÇÃO NO PRESÍDIO DE IGARASSU?
O esquema foi descoberto a partir da apreensão de um celular com o presidiário Lyferson Barbosa da Silva, que exercia liderança no pavilhão onde cumpria pena e que tinha contato direto com Charles e com outros policiais penais em cargos de supervisão.
O contato era feito por meio de mensagens de WhatsApp, ou seja, o presidiário tinha acesso a celulares com autorização da direção.
Preso por participação no assassinato do médico médico Artur Eugênio de Azevedo, de 35 anos - crime ocorrido em 12 de maio de 2014, em Jaboatão dos Guararapes -, Lyferson também é líder de uma organização criminosa especializada no tráfico de drogas e com forte atuação no município de Rio Formoso, no Litoral Sul de Pernambuco.
No ano passado, em meio às investigações que resultaram na operação, Lyferson foi transferido para a Penitenciária Federal de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde permanece cumprindo pena.
Lyferson chegou a ordenar, em 2023, ataques à sede do Detran, a escolas e até hospital no Estado. Segundo a investigação, ele estaria insatisfeito com decisões da Secretaria de Defesa Social e queria provocar a desordem para que a cúpula fosse substituída.
Um diálogo identificou a ordem dada por ele a um comparsa para os ataques a repartições públicas, além de "incendiar veículos e assassinar pessoas inocentes".
QUAIS CRIMES SÃO ATRIBUÍDOS AOS INVESTIGADOS NO PRESÍDIO DE IGARASSU?
Os investigados devem responder pelos crimes de:
Tráfico e associação para o tráfico de drogas;
Lavagem de dinheiro; corrupção; prevaricação;
Promoção ou facilitação de ingresso de aparelho telefônico em presídio;
Participação em organização criminosa.
QUAIS PROVAS E ACUSAÇÕES CONTRA POLICIAIS PENAIS PRESOS NA OPERAÇÃO NO PRESÍDIO DE IGARASSU?
1 - Charles Belarmino de Queiroz
Exerceu o cargo de diretor do Presídio de Igarassu entre 1º de abril de 2016 até o final de 2024. Investigação encontrou troca de mensagens entre Lyferson e Charles, desde 2022, com pedidos para instalação de revestimentos de cerâmica na cela dele - inclusive informando que um amigo iria à unidade prisional para fazer a mão de obra.
Em outra conversa, em 23 de setembro de 2022, Lyferson solicitou autorização do diretor para aquisição de um aparelho celular da marca Apple. Segundo o preso, apenas um aparelho não estava sendo suficiente para ele.
"O preso ainda manda a foto do aparelho celular, supostamente um Iphone 14 Pro Max, que à época era vendido em torno de R$ 7 mil. O diretor responde: 'Blz' Neste diálogo fica evidente a ciência e conivência do diretor Charles com a aquisição e utilização de aparelhos celulares para o detento", descreveu o relatório da PF.
Outra conversa fez referência a transferências de presos de outras unidades para o Presidio de Igarassu a pedido de Lyferson. Em 9 de fevereiro de 2023, ele solicita que o suposto marido de outro detento seja removido para Igarassu para que eles possam cumprir e pena juntos. No diálogo, o diretor pediu o nome para fazer a solicitação.
"No dia 14 de fevereiro de 2023, ocorre a transferência do referido preso da unidade prisional Cotel [Centro de Observação e Triagem, em Abreu e Lima] para o Presídio de Igarassu, conforme prontuário do preso", indicou relatório da investigação.
Em outro diálogo, Lyferson afirmou que pagará R$ 100 por cada uma das 50 caixas de cerveja levadas ao presídio, totalizando R$ 5 mil. As cervejas seriam para uma festa, "sendo a venda realizada pelo próprio diretor Charles, que dá seu 'ok'".
2 - Eronildo José dos Santos
Policial penal lotado no Presídio de Igarassu desde 2011, Eronildo exercia a função de chefe de disciplina e segurança.
Investigação indicou que o servidor se comunicava com Lyferson utilizando o WhatsApp. Nas mensagens, o policial ordenava procedimentos que deveriam ser tomados no pavilhão para autorizar a entrada de visitantes não cadastrados e/ou fora do horário de visitação e também falava sobre a rotina na unidade.
"Chama atenção o fato de o preso ter livre acesso à sala de câmeras do estabelecimento prisional. No dia 30 de maio de 2023, Lyferson se desculpa com Eronildo por ter usado o celular nas áreas comuns do presídio. Aparentemente, há um acordo entre os policiais e presos de que os celulares, que na teoria deveriam se proibidos, só devem ser usados dentro das celas, haja vista que nas áreas comuns há monitoramento por câmeras", detalhou relatório da PF.
Em uma troca de mensagens, em 21 de agosto de 2023, Lyferson informou a Eronildo que o diretor da unidade teria autorizado a entrada de uma "falante da maçã", em referência ao celular da marca Apple. O presidiário questiona se pode deixar o aparelho com Eronildo para buscá-lo depois. O servidor concorda.
3 - Newson Motta da Costa Neto
Policial penal que já foi lotado no Presídio de Igarassu. Newson é apontado como um informante de Lyferson.
"Nas conversas, percebeu-se que possivelmente o policial penal colocava entorpecente para dentro do presídio em conluio com Lyferson, fazia buscas em bancos de dados para a organização criminosa que Lyferson compõe e outros delitos", descreveu a PF.
A investigação indicou que, no dia 21 de dezembro de 2022, possivelmente ocorreu uma entrada de droga intermediada por Newson e solicitada por Lyferson. Naquele dia, R$ 20 mil em dinheiro teriam saído do presídio por intermédio do policial.
4 - Cecília da Silva Santos
Policial penal que exercia atividades no Presídio de Igarassu desde 13 de janeiro de 2022, Cecília é chamada por Lyferson de "Baixinha" e "Nega". Para a Polícia Federal, existia um relacionamento amoroso entre os dois.
"Embora algumas mensagens tenham sido apagadas, é possível inferir que os interlocutores se falam diariamente pelo aplicativo WhatsApp. Nas mensagens, enviam fotos íntimas um para o outro e trocam mensagens carinhosas", disse a PF.
Segundo a investigação, ela se utilizava da função pública para receber benefícios irregularmente e solicitava presentes de Lyferson, "além de passar informações restritas sobre outros presos".
5 - Everton de Melo Santana
Mensagem de 6 de agosto de 2022 mostra que o policial penal entrou em contato com Lyferson perguntando sobre um pedido de sushi. Polícia Federal descreveu Everton como mais um servidor público que facilita a entrada de alimentos não autorizados.
A investigação indicou que, naquele dia, Lyferson fez o pagamento de sushi para o policial penal e toda a equipe que estava de plantão. Ele usou um celular na cela para a transferência via Pix.
Outras mensagens indicaram que, em dias de plantão do policial penal, pagamentos de comida, como hambúrguer, eram realizados para a entrada no presídio. Valores chegaram a até R$ 549 por pedido, segundo a PF.
6 - Ernande Eduardo Freire Cavalcanti
O policial penal realizava frequentemente pedidos de comidas para Lyferson, segundo a investigação. O pagamento ocorria por meio de Pix.
Nos relatórios, há a transcrição de um áudio supostamente enviado por Ernande a Lyferson com exigências: “Eu quero uma barca [de sushi] só de especial, bem maçaricada... de salmão... com todo tido de especial... carioca, tá entendendo? Eles montam uma barca com quantas peças você pede”.
Investigação apontou que, após o diálogo, Lyferson fez a transferência do Pix ao restaurante e que Ernande fez o pedido no próprio nome e pediu que a entrega fosse realizada no Presídio de Igarassu.
Mensagens também indicaram que o policial pedia dinheiro ao presidiário. Certa vez, teria solicitado duas notas de R$ 50 para abastecer o carro particular com combustível.
7 - Reginaldo Ferreira Aniceto
Segundo a Polícia Federal, o policial penal fazia serviços para Lyferson em troca de recompensas. Em conversa no dia 6 de maio de 2022, o presidiário solicitou que Reginaldo escolhesse um tênis.
No dia 14 de junho do mesmo ano, o servidor foi até um shopping e retornou mandando imagens do tênis escolhido.
Mensagens indicaram que o policial facilitava a entrada de pessoas não autorizadas a pedido de Lyferson.
Em outra conversa, no dia 29 de junho de 2022, o policial autoriza a entrada de uma mulher para visitar Lyferson e entregar perfumes, camisas e uma corrente de ouro. No diálogo, o presidiário promete presentear o policial com um dos perfumes.
8 - Ednaldo José da Silva
Policial penal que já foi lotado no Presídio de Igarassu. Foi descrito pela Polícia Federal como um servidor com "desequilíbrio financeiro" e que chegou a pedir empréstimos a Lyferson. Em uma das conversas, solicitou R$ 3 mil.
"Na sequência da conversa entre os dois interlocutores, Edinaldo conversa com Lyferson para chamá-lo para jogar futebol e dentre outras atividades que demonstram confiança e amizade entre os dois", apontou a PF.
9 - André de Araújo Albuquerque
Preso na segunda fase da operação, o ex-gestor teria participação nos lucros obtidos por meio de esquema que favorecia detentos do Presídio de Igarassu. Mensagens encontradas nos celulares de outros policiais penais presos indicaram isso.
Além de ter atuado como secretário executivo da Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap) e superintendente de Segurança Prisional no governo de Raquel Lyra, ele também teve cargos de chefia na gestão Paulo Câmara.
Em 2022, inclusive, chegou a assumir interinamente a Secretaria Executiva de Ressocialização, pasta que ganhou status de secretaria com a reforma administrativa no começo de 2024.
André foi exonerado do cargo em dezembro do ano passado, em meio ao avanço das investigações da Polícia Federal. Na hierarquia, André era considerado o braço direito de Paulo Paes, titular da Seap.
SERVIDORES AFASTADOS DAS FUNÇÕES PÚBLICAS
O policial penal Moisés Xavier da Silva também faz parte das investigações. Ele foi afastado das funções públicas por determinação da Justiça na primeira fase da operação.
Lotado no setor de enfermaria do Presídio de Igarassu, ele teria facilitado a renovação da habilitação de motorista de Lyferson. O esquema teria envolvido o valor de R$ 5 mil.
"Notadamente Moisés é mais um policial penal que não se opôs em conversa com um preso utilizando o aparelho livremente no presídio, fazendo, inclusive, favores para o preso", descreveu o relatório da Polícia Federal.
A outra servidora afastada das funções foi a dentista Edilma Alves Francisco de Andrade. Um diálogo mostra que Lyferson teria transferido R$ 1mil via Pix para Edilma como pagamento por um procedimento odontológico no presídio. Ao final do diálogo, ela chegou a oferecer cosméticos para ele.
EX-DIRETOR DO PRESÍDIO DE IGARASSU ACUSA POLICIAIS CIVIS E DELEGADO
Em depoimento à Polícia Federal, o ex-diretor Charles Belarmino negou as acusações de que beneficiava presos em troca de propina. Mas reconheceu que sabia e até presenciava detentos usando celulares.
No depoimento, Charles declarou que tinha "ciência de que, no interior do presídio, diversos presos mantinham aparelhos celulares com acesso à internet". E afirmou que alguns entravam na unidade "com ciência e a pedido de autoridades policiais da Polícia Civil de Pernambuco". Ele falou, inclusive, o nome de um delegado que teria solicitado essa entrada de celulares.
Sobre as acusações de que permitia a entrada de tatuadores profissionais, visitantes não cadastrados e que cobrava taxas para a entrada de materiais ilícitos no presídio, a exemplo de drogas e bebidas, o ex-diretor negou.
As investigações apontaram que o presidiário Lyferson Barbosa da Silva exercia uma forte liderança no pavilhão onde cumpria pena e que tinha contato direto com Charles e com outros policiais penais em cargos de supervisão. O contato era feito por meio de mensagens de WhatsApp.
Charles reconheceu, em depoimento, que já presenciou Lyferson usando celular na unidade prisional "na presença de policiais civis".
Disse ainda que "conversou com Lyferson por meio do aplicativo WhatsApp algumas vezes". Mas argumentou que o "teor da conversa se limitava ao bom andamento do presídio e não a atividades ilícitas".
Em relação às festas com bebidas alcoólicas e garotas de programa no Presídio de Igarassu, cujas imagens circularam pelas redes sociais, Charles declarou que "nunca tomou conhecimento" e que "nunca recebeu presentes de qualquer preso".