Saúde Única: como o médico-veterinário atua na linha de frente das doenças que nascem da conexão entre humanos, animais e ambiente
Profissional monitora ambientes, vetores e animais para impedir que ameaças invisíveis alcancem a saúde humana e se tornem epidemias
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A cena é comum: uma família entra numa clínica veterinária com o cachorro no colo, e lá está o profissional que a maioria das pessoas conhece: o médico-veterinário clínico, atencioso, cuidadoso, curador de animais de estimação. A imagem é tão forte que muitos sequer imaginam que o veterinário, fora das clínicas, também desempenha uma função estratégica e vital para a saúde humana.
Nos bastidores da vigilância em saúde, nas prefeituras, nos laboratórios, nos centros de controle ambiental e até nas matas, está um exército de veterinários. Eles são responsáveis por prevenir surtos, bloquear epidemias, monitorar vírus e proteger vidas.
Hoje, mais do que nunca, essa atuação encontra fundamento no conceito da Saúde Única: a compreensão de que a saúde das pessoas, dos animais e do meio ambiente não apenas se conectam, mas se determinam mutuamente. Em tempos de pandemias, emergência climática e expansão urbana desordenada, essa interdependência se tornou impossível de ignorar.
O Brasil instituiu, por meio da Lei nº 14.792, de 5 de janeiro de 2024, o Dia Nacional da Saúde Única (sinônimo de Uma Só Saúde), que deve ser lembrado anualmente no dia 3 de novembro, com o objetivo de conscientizar a sociedade sobre a relação indissociável entre as saúdes animal, humana e ambiental.
Na Saúde Única, o médico-veterinário é o guardião silencioso. É o profissional que enxerga o conjunto: o elo entre o humano e o não humano. Ele também é a linha de defesa que impede que pequenas ameaças se tornem grandes tragédias.
"Hoje, nossa visão é guiada pelo conceito de Saúde Única (ou Uma Só Saúde, conforme a nomenclatura adotada pelo Ministério da Saúde). Esse conceito reconhece que um agravo de saúde tem uma correlação profunda entre o ambiente, animais, vetores e humanos; ele engloba todo um ecossistema", explica a médica-veterinária sanitarista Ivana Belmonte, integrante da Comissão Nacional de Uma Só Saúde do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV).
"Nós, médicos-veterinários, somos protagonistas nesse conceito devido à nossa formação profissional extremamente ampla. Temos formação em saúde pública, vigilância epidemiológica, vigilância sanitária e vigilância ambiental. Isso nos permite atuar em todas essas áreas de prevenção", acrescenta.
O elo oculto das doenças humanas
Se um médico humano cuida da saúde das pessoas, o veterinário cuida de tudo aquilo que pode adoecer as pessoas antes mesmo que elas adoeçam. E esse "tudo" é muito amplo.
A Organização Mundial da Saúde estima que mais de 70% das doenças que atingem o ser humano têm origem animal - ou seja, são zoonoses. Isso inclui as clássicas, como a raiva.
A vacinação contra a raiva em animais é fundamental não apenas para manter os cães e gatos saudáveis, mas também para evitar a transmissão dessa doença grave para os seres humanos. A vacinação antirrábica é fornecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como parte do esforço para quebrar o ciclo de transmissão da doença entre animais e seres humanos.
Fatores ambientais, climáticos, sociais e econômicos tem profundo impacto na transmissão e na distribuição geográfica de doenças zoonóticas.
Segundo a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA), 60% dos patógenos que causam doenças em humanos tiveram origem em animais; 75% das doenças infecciosas emergentes humanas têm origem animal e 80% dos patógenos com potencial para bioterrorismo são de origem animal.
Esse panorama mostra que patógenos zoonóticos possuem papel importante no surgimento de novas epidemias e pandemias.
"Nossa atuação vai além da prevenção. Também podemos estar na Atenção Básica, que já é a assistência às pessoas adoecidas. Por isso, o médico-veterinário tem que estar nos postos e nas unidades de saúde, porque as principais doenças que acometem o ser humano hoje são transmitidas por animais, seja pelo contato com o animal, seja pela sua carne ou seu leite", explica a médica-veterinária sanitarista Jussara Alencar, da Prefeitura do Recife.
"O veterinário não cuida só de animais; ele cuida de cadeias produtivas, de ambientes, de vetores e de interações ecológicas que determinam a saúde da população. Nós temos esse amplo conhecimento de como essas doenças chegam, como elas devem ser transmitidas, vigiadas e controladas."
No setor de vigilância sanitária, por exemplo, é o veterinário quem também fiscaliza produtos de origem animal. "Se um leite ou uma carne está contaminado, é potencial agente de transmissão. Por isso que a presença do veterinário, em inspeções, é uma garantia de saúde pública", acrescenta Jussara.
O público raramente sabe, mas o veterinário também está por trás de decisões como proibição do consumo de determinado lote de alimentos e rastreio de surtos de intoxicação alimentar.
"A área de atuação do médico-veterinário é muito ampla. Inclusive, poucos sabem que, nas equipes de vigilância sanitária, é preciso ter esse profissional para fazer a inspeção de produtos de origem animal."
Nos hospitais e clínicas de humanos, esse rastreamento aparece como casos de infecção alimentar. Na vigilância, aparece como trabalho investigativo e, frequentemente, é um veterinário quem conduz a investigação.
O território das arboviroses: onde o veterinário se torna estrategista
O combate às arboviroses (grupo de doenças transmitidas por artrópodes como mosquitos) é mais uma área de protagonismo do médico-veterinário, embora isso ainda seja pouco divulgado arboviroses. Quando falamos sobre dengue, zika, chikungunya, febre amarela e oropouche, é importante considerar análise ambiental, vetorial e comportamental. Todas essas doenças dependem da compreensão de ciclos ecológicos. E é aí que entra o veterinário.
"Temos formação sólida em vigilância epidemiológica, em dinâmica populacional de vetores e em saúde ambiental", explica a médica-veterinária sanitarista Ivana Belmonte. "Isso nos permite interpretar dados ambientais e orientar políticas de controle com mais precisão."
Antigamente, o combate ao mosquito Aedes aegypti era quase exclusivamente baseado no "casa a casa". Hoje, com armadilhas inteligentes, georreferenciamento e análise em tempo real, o médico-veterinário atua como gestor de dados epidemiológicos, pois ele é capaz de analisar temperatura e umidade do ar, padrões de chuva, índices de infestação, notificação de casos humanos, circulação de sorotipos virais e vulnerabilidade dos territórios.
"Todas as arboviroses são cíclicas. A que mais acontece, com certeza, em todo o Brasil, é a dengue. Mas há outra arbovirose que vem causando preocupação: oropouche. Ela preocupa e exige um manejo ambiental complexo, o que reforça como o conceito de 'uma só saúde' é importante", frisa Ivana, ao destacar que, cada vez mais, o cenário exige identificação de onde o vetor (mosquito) se multiplica, onde há risco de explosão de casos e onde enviar equipes de campo.
Segundo Ivana, diversas mudanças ambientais provocadas pela ação humana (como desmatamento, adensamento urbano e acúmulo inadequado de resíduos) contribuíram para que o Aedes aegypti se adaptasse ao ambiente urbano. Dessa maneira, o papel do médico-veterinário é também entender como essa ecologia urbana funciona e agir com inteligência.
Esse raciocínio só reforça o quanto a questão ambiental tem papel importante. Florestas, por exemplo, mantêm grande parte das zoonoses em equilíbrio. Por isso, se houver o desmatamento, esse equilíbrio será ameaçado, com reflexos no transbordamento através dos animais silvestres. Isso coloca em risco a saúde dos animais domésticos e a humana.
Febre amarela: quando os macacos salvam vidas humanas
A febre amarela silvestre é um exemplo importante da atuação integrada da Saúde Única. O Brasil não registra febre amarela urbana desde 1942, mas a forma silvestre segue ativa em áreas de mata. E quem avisa que o vírus está circulando não são os humanos; são os primatas.
Quando macacos adoecem e morrem, ocorre o que se chama de epizootia. É o veterinário quem identifica a espécie, coleta material, investiga a causa, estuda o deslocamento dos grupos, cruza com mapas de corredores ecológicos e emite alerta para vacinação humana na área.
"Os macacos são nossos sentinelas naturais. Eles não transmitem a doença; eles sofrem com ela. Quando adoecem, estão nos avisando que a febre amarela está se aproximando", explica a médica-veterinária Jussara Alencar.
Ao contrário do que muitos acreditam, a morte de macacos não é causa; é consequência. Compreender isso é fundamental para evitar agressões a animais, problema que frequentemente surge em surtos. Nesse contexto, o papel educativo do veterinário é tão importante quanto o técnico.
O veterinário como educador de territórios
A saúde pública não acontece apenas em laboratórios e escritórios. Acontece na rua, na casa das pessoas, no quintal onde há um pote esquecido com água, no terreno baldio onde o mosquito encontra um lar, no curral improvisado onde um animal infectado transmite doença.
"Na vigilâncias em saúde, as equipes são multiprofissionais. Nós participamos de mutirões e visitas porta a porta. Nessas equipes, estamos inseridos com sanitaristas, biólogos e outras profissões, trabalhando em todo aquele contexto da Saúde Única para melhorar a saúde pública nas cidades", diz Jussara.
Por isso, a educação em saúde é uma das ferramentas mais poderosas do veterinário. Ele vai às escolas, às unidades de saúde, às associações comunitárias. É capaz de ensinar por que o Aedes se adapta tão bem às cidades, como evitar criadouros, como identificar sinais de zoonoses, como manejar corretamente resíduos, como conviver com animais silvestres sem colocá-los (e nos colocar) em risco.
Essa presença na comunidade cria vínculos e transforma comportamento, o que é algo essencial diante de doenças que dependem tanto de ações individuais e coletivas.