Projeto transforma rotina de catadores que viviam invisíveis nas ruas do Recife
Com o apoio do Conexão Cidadã, trabalhadores que viviam sem documentos e sem acesso à saúde, recuperam a cidadania e têm novas oportunidades
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Uma profissão de grau máximo de insalubridade é aquela cujos trabalhadores estão continuamente expostos à agentes que causam danos extremos à saúde. É o caso dos catadores de materiais recicláveis, que têm que lidar diariamente com lixo e resíduos contaminados. Há também, dentre muitos problemas, a precarização e informalidade do trabalho, invisibilidade social, violência nas ruas e insegurança alimentar.
A atuação de cooperativas e associações nesse cenário surge como principal alternativa para promover dignidade e melhorar a qualidade de vida desses trabalhadores. O Conexão Cidadã, projeto pensado para os catadores e catadoras de recicláveis, já opera em seis capitais brasileiras, incluindo a pernambucana.
Direitos dos catadores de recicláveis
No Brasil, o grau máximo de insalubridade garante aos trabalhadores o direito a um acréscimo de 40% sobre o salário mínimo. Mas quando esses profissionais são autônomos, pouca diferença faz o que diz a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Em levantamento de 2023, somente no Recife haviam 3.450 catadores avulsos registrados no Cadastro Único (CadÚnico) para participação em programas sociais. Em Pernambuco, passavam de 8.000.
Ainda assim, a categoria tem buscado reconhecimento e melhores condições. A criação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), em 2001, marcou o início dessa organização no país. Catadores que trabalhavam de forma isolada passaram a lutar, juntos, por direitos e visibilidade.
Uma das principais conquistas veio com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010), que reconhece a importância social, econômica e ambiental do trabalho dos catadores, incentiva cooperativas e determina sua inclusão na coleta seletiva. No mesmo ano, Pernambuco criou uma política estadual (Lei n° 14.236/2010) voltada ao setor.
Todavia, mesmo com os avanços legais, a realidade ainda é de vulnerabilidade. Foi como o objetivo de apoiar a classe que, em janeiro de 2025, o projeto Conexão Cidadã desembarcou no Recife. Já são 640 catadores acolhidos na cidade, e segue em expansão.
Trata-se de uma parceria da Associação Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (Ancat) com a Fundação Banco do Brasil para ampliar o acesso a direitos e oportunidades.
Coordenador do projeto no Recife, Daniel Pernambucano de Mello explica que "o Conexão Cidadã nasceu para dar visibilidade e trazer dignidade para os catadores autônomos, que estão ainda mais à margem e invisíveis do que os organizados em cooperativas e associações".
A vulnerabilidade do trabalho na rua
O recifense Maurício Nunes da Silva conhece bem a realidade do trabalho nas ruas. Ficou órfão de pai aos 10 anos de idade e passou a trabalhar com a catação de recicláveis com a mãe e os seis irmãos, abandonando os estudos na quarta série.
Hoje, aos 39 anos, o ofício permanece sendo a fonte de renda da família, que já cresceu mais duas gerações. Mas as quase três décadas de trabalho como catador não renderam histórias fáceis.
"A gente sempre trabalhou sem nenhuma visibilidade, sabe? Por mais que a gente carregue carroça pelos meios da rua", conta Maurício. Ele acrescenta que, quando são notados, "não é com bons olhos. Somos marginalizados, confundidos com ladrão e com desocupados". O cenário piora quando se vive em situação de rua.
Em pesquisa inédita, o Conexão Cidadã constatou que 40% dos participantes no Recife pertencem a esse grupo. Maurício, que já esteve em situação de rua, lembra a falta de acessos: "não se sabe o que é um posto [de saúde]. Você não sabe nem o que é tomar banho, a não ser quando está chovendo".
O levantamento do Conexão mostrou também que 45% dos catadores não tem garantia de que vão fazer mais do que duas refeições diárias. Desse grupo, um terço se alimenta no máximo 1 vez por dia.
Dignidade
A narrativa entristecida de Maurício ganha um novo tom quando o projeto entra na história. O Conexão Cidadã possibilitou que direitos básicos, mas outrora distantes, chegassem aos catadores do Recife: "a gente não tinha documento, a gente não ia para posto, a gente não era vacinado".
Pela primeira vez, ele mesmo pôde dedicar um momento para cuidar da saúde. Fez exames, identificou pontos que precisava de atenção e está sendo acompanhado: "o projeto não soltou a mão da gente, sabe?".
O trabalho de catação, que é a única fonte de renda de 44% dos atendidos e parte fundamental dos ganhos de outros 36%, também melhorou. Os catadores receberam Equipamentos de Proteção Individual (EPI's), garrafinhas e camisas do projeto.
Também é oferecido "acolhimento psicossocial e atendimento jurídico, até o fortalecimento da segurança e do empoderamento profissional", como explica Daniel Pernambucano.
Essas ações, além de promoverem dignidade, permitiram acesso a locais que antes eram inacessíveis, como narra Maurício: "A gente passou agora a pegar [recicláveis] em restaurante, que antigamente a gente andava sujo e não conseguia. Ensinaram a gente que a gente pode andar limpo", comemora.
Hoje, o catador é também um mobilizador do projeto e auxilia na cooptação de mais participantes. "Eu passei a vida toda na reciclagem e não tive ajuda de nada. Como eu, muitos catadores estão na mesma situação. E aí, como o projeto foi bom para mim, então vai ser para os meus irmãozinhos".
A iniciativa também é uma forma de reparação social para os catadores do Recife. Nas palavras do coordenador, "O Conexão Cidadã conecta pessoas, histórias e propósitos, mostrando que esses profissionais são parte da sociedade e merecem dignidade, reconhecimento e proteção".